45% dos médicos no Brasil sofrem com ao menos um tipo de transtorno mental; taxa atinge mesmo patamar do pós-pandemia, revela novo estudo


Estudo revela que em apenas seis meses, houve uma elevação de 13% no total de casos nessa população. Entre os transtornos mais comuns estão ansiedade, depressão e burnout

Cerca de 45% dos médicos no Brasil apresentam algum quadro de transtorno mental, como ansiedade, depressão e burnout, segundo estudo “Qualidade de vida dos médicos 2025” feito pela Afya, maior hub de educação e soluções para a prática médica do país. O número é o mesmo registrado no pós-pandemia, em 2022, e representa um aumento de 13% em relação ao levantamento feito entre julho e agosto de 2024.

A principal hipótese dos pesquisadores para explicar esse aumento é a maior conscientização sobre saúde mental, que leva mais profissionais a reconhecerem sintomas, buscarem ajuda especializada e obterem o diagnóstico adequado. Ou seja, o quadro retrata uma realidade não camuflada pela primeira vez.

— Esses números vinham em queda desde o período da pandemia, que foi um agravo de saúde bem grande. A princípio, não há um motivo claro para o aumento observado esse ano, então uma das hipóteses que levantamos é a possibilidade de estar havendo uma conscientização maior, uma busca maior por ajuda. Então, na verdade, isso pode ser um ponto positivo porque pode indicar que as pessoas estão buscando mais ajuda, por isso tem mais diagnóstico — diz o médico Eduardo Moura, diretor do Research and Innovation Center da Afya.

Para efeito de comparação, um levantamento com 25 mil trabalhadores brasileiros de 22 organizações, em 2023, mostrou que 33% apresentam algum tipo de transtorno mental em nível severo ou extremamente severo, de acordo com a Vittude, uma plataforma que conecta psicólogos e pacientes. Ou seja, a saúde mental dos médicos está pior do que a média dos trabalhadores.

O estudo da Afya foi realizado entre janeiro e abril deste ano e foram recebidas um total de 2.147 respostas. Cerca de 40% dos médicos responderam que são diagnosticados com ansiedade — sendo que 23,3% destes apresentaram os sintomas nos últimos 12 meses, o que sugere um agravamento recente e possivelmente relacionado a fatores como sobrecarga de trabalho, instabilidade econômica ou crises sociais.

A depressão vem em segundo lugar com 37,6% dos profissionais diagnosticados com essa condição, e o burnout em terceiro. Para agravar a situação, nos três transtornos, uma grande parcela dos médicos disse não estar em tratamento, apesar do diagnóstico. No caso do burnout, por exemplo, apenas 5,7% afirmaram ter o diagnóstico, mas 32,6% dizem que apresentam sintomas da condição, mas ainda não buscaram ajuda.

O médico de família e comunidade Marcelo Gobbo, tem apenas 31 anos, mas já teve dois episódios de burnout nos últimos sete anos. O primeiro aconteceu durante a residência.

— Comecei a perceber que eu estava desconectado do meu trabalho. Eu não sentia mais prazer em atender, ficava constantemente irritado e estressado. Comecei a ter episódios muito intensos de desatenção. Quando eu atendia uma pessoa, precisava ouvir várias vezes o que ela estava me falando, porque eu não conseguia capturar o que ela estava dizendo, por estafa. Então decidi procurar ajuda do psiquiatra, fiquei um tempo afastado e quando voltei, continuei fazendo acompanhamento com psiquiatra e psicólogo.

O segundo episódio de Gobbo ocorreu em 2022, durante a pandemia.

— Quando adoeci em 2022, eu estava acompanhado, e mesmo assim tive um episódio mais grave, que eu precisei ficar internado. Durante a pandemia, eu acabei ficando numa posição estratégica de cuidar dos profissionais de saúde do hospital onde eu trabalhava. Um dia fui dar uma aula, e eu travei. Tive uma crise de pânico e dali já fui para a emergência, porque parecia algo cardíaco. Mas quando investigamos, não tinha nada orgânico e se restabeleceu o diagnóstico de burnout. Foi literalmente como se eu estivesse tendo o piripaque do Chaves — conta.

Desde então, o médico conta que fez várias alterações em seu próprio estilo de vida.

— Comecei a não me deixar em segundo plano. Então, estabeleci meus horários de descanso e parei de abrir mão deles. Atividade física passou a ser uma prioridade muito grande, que é algo que acaba tendo um efeito protetor muito intenso na prevenção do psicoadoecimento e até como intervenção padrão ouro para a ansiedade e depressão. Além da prática de meditação, que era algo que eu não fazia antes. E tudo isso também puxa outros aspectos do estilo de vida, como a alimentação e o sono, que também passaram a ser alvo de atenção constante.

Ele também passou a se dedicar a trabalhar com a abordagem do estilo de vida e entender os fatores de proteção e agravamento desse tipo de situação, em especial entre médicos.

— Sabemos que o burnout entre médicos envolve várias questões. A carga horária é uma delas. Depois, vem equilíbrio entre vida pessoal e trabalho e questões que envolvem a não identificação com o trabalho. Esses fatores acabam sendo mais relevantes do que remuneração. Outro ponto importante é que quando eu tenho um episódio de burnout, eu posso me cronificar dentro dele. Então, começa como burnout, mas isso evolui com um diagnóstico de depressão ou ansiedade, por exemplo — explica.

Um segundo levantamento da Afya, feito para mapear as principais conversas e dúvidas existentes atualmente no universo da medicina, com base em publicações no X, escancaram a questão da carga horária e das condições de trabalho.

“Essa questão de sobrecarga de trabalho é tão normalizada na medicina a ponto de quem procura ter uma carga ‘normal’ de trabalho ser visto como preguiçoso”, escreveu um usuário. “Mais um colega trancando a residência médica por depressão grave + ideação suicida”, relata outro.

Mulheres e jovens são mais afetados

A pesquisa revelou ainda que as mulheres não só são maioria entre os médicos com problemas nos três quadros de transtornos mentais, como entre elas, também houve aumento da prevalência em relação ao ano passado: 51,8% este ano, contra 46,8% na pesquisa de 2024.

De acordo com os pesquisadores do Research & Innovation Center da Afya, esses dados sugerem não apenas uma maior vulnerabilidade feminina a quadros de transtornos mentais — possivelmente relacionada à sobrecarga emocional, dupla jornada e desigualdades estruturais —, mas também uma maior disposição para reconhecer e nomear o sofrimento psíquico. A diferença de gênero, portanto, não é apenas estatística — ela é também social, cultural e clínica.

— A questão de disparidade de gênero é algo permanente. Nas pesquisas passadas, a gente sempre observou esse mesmo padrão. Isso também é algo que aparece na literatura médica. Por outro lado, sabemos também que a mulher procura mais atendimento, então acredito que tem um problema de subdiagnóstico entre os homens. — Moura.

Em relação à faixa etária, os mais jovens foram mais afetados. Na faixa etária de até 35 anos, metade dos profissionais apresenta diagnóstico de transtorno mental. A partir dos 36 anos, observa-se uma inversão gradual: a proporção de médicos sem transtornos começa a superar a dos diagnosticados, chegando a 82% entre os profissionais com 56 anos ou mais.

De acordo com os pesquisadores, essa curva descendente pode indicar tanto que os primeiros anos da carreira médica estão fortemente associados a altos níveis de sofrimento psíquico, quanto uma adaptação gradual ao ambiente de trabalho ao longo dos anos. Também é possível que haja subnotificação entre os mais velhos, que podem ter mais dificuldade em reconhecer ou relatar sintomas emocionais.

— A pesquisa mostrou que a prevalência é maior entre mulheres e jovens. A medicina está se tornando cada vez mais feminina e cada vez mais jovem, então é justamente quem está mais suscetível ao adoecimento mental — Moura.

A pesquisa revelou ainda que 6 em cada 10 médicos não estão satisfeitos com a própria saúde. Esse dado é especialmente relevante considerando que os participantes são todos médicos, o que pode indicar um nível elevado de autocrítica ou uma consciência mais apurada sobre o próprio estado de saúde. E cerca de um em cada quatro médicos avaliaram sua qualidade de vida como “ruim” ou “muito ruim”, evidenciando um nível significativo de insatisfação.

Esses dados sugerem que, mesmo entre profissionais altamente capacitados, o sentimento de qualidade de vida está longe de ser majoritariamente positivo — e isso pode refletir diretamente em saúde mental, desempenho e engajamento.

Por exemplo, a prática regular de atividade física, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de pelo menos 150 minutos por semana, ainda está longe de ser uma realidade entre os médicos. Apenas 17% afirmam se exercitar sempre e 21,2% frequentemente.

Isso significa que mais de 40% mantêm uma rotina física insuficiente ou inexistente, o que é especialmente preocupante diante das evidências científicas que associam a atividade física à redução dos sintomas de transtornos mentais, além de seu papel comprovado na prevenção.

Por outro lado, quase metade dos participantes percebeu uma piora em seu estado emocional recente, com cerca de 30% afirmando que seu nível de estresse aumentou significativamente nos últimos 12 meses, e outros 19,6% concordando parcialmente com essa afirmação.

— A baixa aderência de médicos a um estilo de vida saudável, como a prática regular de exercício físico e alimentação saudável, é preocupante. Por mais que isso esteja sendo mais falado e adotado entre a sociedade, quando a gente olha para o médico, que deveria ser o público que aderiria idealmente a isso, a gente tem um gap muito grande. Então ainda precisa de bastante avanço nesse sentido porque a saúde mental é consequência de um todo e a qualidade de vida é um ponto super importante — avalia Moura.

A crise de saúde mental não é exclusiva da classe médica. Dados da Organização Mundial da Saúde indicam que o Brasil é o país com a maior taxa de pessoas ansiosas do mundo, com 9,3% da população brasileira sofrendo com o transtorno, o que equivale a 18,6 milhões de pessoas. O país também é o segundo com a maior taxa de depressão, com 5,8% da população afetada. No caso do burnout, de acordo com dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem com a síndrome de burnout, o que coloca o país em segundo lugar no maior número de casos diagnosticados no mundo.

Mas identificar e tratar essas condições entre os médicos talvez seja mais urgente, por ser uma profissão que tem uma cultura de estigma que desencoraja a busca por ajuda e cujos profissionais aprendem a normalizar uma má qualidade de vida.

— Os médicos normalizam a má qualidade de vida. Isso fica claro quando notamos que 40% têm transtorno de ansiedade e só 25% dizem que sua qualidade de vida é ruim — avalia o diretor da Afya.

Até hoje a medicina é considerada uma das profissões mais gratificantes e desejadas. Basta olhar para a quantidade de faculdades de medicina que abriram no Brasil nos últimos anos. No entanto, esse trabalho também traz consigo fatores estressantes.

Estudos mostram que médicos apresentam taxas mais altas de depressão, ansiedade e suicídio do que a população em geral devido a fatores como longas jornadas de trabalho, pressão intensa, sofrimento moral causado pelos resultados dos pacientes e uma cultura que desencoraja a busca por ajuda.

É inegável que o estresse físico e emocional causado pela pandemia de Covid-19 contribuiu não só para o desenvolvimento de distúrbios mentais entre os médicos como exacerbou aqueles que já existiam. Por outro lado, esse período também escancarou esse problema, que muitas vezes ficava escondido, e aumentou a conscientização sobre a necessidade de buscar ajuda.

Agora, segundo os pesquisadores, é necessário que o cuidado com quem cuida seja reposicionado como prioridade estratégica, com políticas que promovam bem-estar de forma contínua, integrada e baseada em evidências, além da realização de abordagens mais sensíveis e inclusivas.

Campanha “Bora se Cuidar”

Inspirada nos resultados da pesquisa, a Afya lançou a campanha “Bora se Cuidar”, que reúne em um site diferentes formatos de apoio, como chat de ajuda, cartilha de autocuidado, podcasts calendário de eventos para os profissionais de saúde. https://www.afya.com.br/bora-se-cuidar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *