Ela transplantou coração aos 10 anos e quer correr na praia pela 1ª vez


Aos 10 anos, a menina Lavínia Machado Cruvinel Lacerda vai poder correr na praia pela primeira vez. Esse era um de seus sonhos após fazer um transplante de coração.

Lavínia tem uma doença rara e genética, chamada cardiomiopatia hipertrófica, e esperava o órgão desde o final de março após os tratamentos deixarem de ser eficazes. A menina convive com a limitação de esforço físico desde que foi diagnosticada, antes do primeiro ano de vida. Nunca pôde correr, pelo risco de sobrecarregar o órgão.

“Nas consultas dela bebezinha, o pediatra falou que a escuta do coração era diferente, mas que poderia ser só um sopro”, conta Michelle Machado Cruvinel Lacerda, mãe de Lavínia. O diagnóstico oficial chegou aos 6 meses.

A cardiomiopatia hipertrófica é uma doença no músculo do coração, o miocárdio. “O órgão não consegue relaxar, e o músculo fica muito grosso”, explica a cardiologista pediátrica Cristiane Binotto, responsável pelo serviço de cardiologia clínica do Hospital Pequeno Príncipe (PR).

A pessoa pode ter sintomas, como Lavínia tinha a escuta diferente, ou não. Nos casos silenciosos, a doença se torna bastante perigosa, porque é capaz de causar arritmias e levar à morte súbita —ela é, inclusive, a principal causa de morte súbita em atletas jovens.

Saúde do coração em 25%

Lavínia está internada na UTI do Hospital Albert Einstein (SP) desde 30 de março. Ela é natural de Medeiros, cidade no interior de Minas Gerais, mas a família se mudou para São Paulo pela necessidade de cuidados intensivos. “As famílias de Minas não andam sozinhas”, brinca Michelle.

Quando criança, Lavínia não tinha tantas limitações, já que passava a maior parte do tempo sentada. Mas aos 3 anos veio a primeira crise: ela desmaiou após subir no pula-pula durante uma festa. Foi então que a vida da menina começou a mudar.

“Desde que a Lavínia tem 3 anos, não teve um ano em que ela não desmaiou”. Michelle Machado Cruvinel Lacerda, mãe de Lavínia

Os desmaios indicaram a necessidade de tratamento invasivo, e Lavínia passou pela cirurgia para colocar um desfibrilador implantável —com função parecida a de um marca-passo. A partir daí, já não podia fazer qualquer atividade com esforço físico. Nunca participou das aulas de educação física, ou foi brincar na casa de amigas.

“A família foi se acostumando com o ritmo dela. Se íamos à praia, a gente alugava um lugar em que ela não precisasse andar muito, e o pai sempre estava junto para carregar. A vida dela sempre foi mais quietinha, a gente brinca que ela não sabe correr. As brincadeiras sempre foram manuais, como joguinhos, e ela sentada”, conta Michelle.

No ano passado, a doença começou a piorar. “O músculo foi ficando mais hipertrófico e aí o marca-passo não dá conta”, explica a mãe. Em junho, Lavínia passou mal na casa de uma das avós enquanto assistia TV. Foi a primeira vez em que ela desmaiou sem qualquer esforço físico.

Em novembro, outro mal-estar na escola, mais grave desta vez. A menina ficou internada uma semana até que a equipe médica indicou a transferência aérea para São Paulo. No caminho, ela teve três paradas cardíacas —foram seis em toda a sua vida.

“Ela caminhava para o transplante, porque toda vez que passa mal é como se perdesse a função do coração”, comenta Michelle. Lavínia ficou internada até 23 de dezembro e, após a alta, a família ficou morando na capital paulista.

Em março deste ano, Lavínia despertou numa madrugada passando mal. Os pais a levaram ao hospital, e a equipe médica indicou que o transplante era a única saída. Deste então, Lavínia ficou internada na UTI e, antes do transplante, tinha 25% das funções do coração.

Rotina de Lavínia na UTI

Michelle e o marido sempre conversaram com Lavínia sobre sua doença. Ela entendia que estava na fila do transplante e, inclusive, esperava por esse dia. A expectativa é ter uma vida diferente após a recuperação da cirurgia. “Mãe não é boba, e eu sempre soube no fundo do meu coração que ela faria o transplante. Mostrava crianças internadas, falava que trocaram o coraçãozinho.”

“Ela sabia da doença desde que aprendeu a falar. Eu a colocava na frente do espelho, porque ela tem a cicatriz no meio do peito, e mandava ela repetir a frase ‘mesmo com a cicatriz, você é linda e pode ser tudo o que quiser’. Michelle Machado Cruvinel Lacerda

Michelle passa o dia no hospital com a menina. O marido, Rafael, e a filha mais nova, Paola, se revezam em visitas. Lavínia tem a manhã livre. À tarde, estuda e faz lição com a pedagoga do hospital. Dorme cedo, às 20h30. Também tem sessões de fisioterapia, vai à brinquedoteca e visita o jardim se há liberação e sempre acompanhada pela equipe médica.

A menina ama fazer pulseiras de miçanga e é vaidosa: gosta de pintar as unhas e de cuidar da pele. No perfil @coracaoparalavinia, no Instagram, a mãe compartilha registros da vida no hospital.

Juntas, elas gravam vídeos para conscientizar sobre doação de órgãos. Michelle é dentista e não trabalha há um ano para cuidar da filha. “Meu trabalho não tem como ser home office”, diz. Teve a ideia de usar o seu perfil, então com 2.000 seguidores, para divulgar a rotina com a filha internada. Em dois meses, soma mais de 70 mil seguidores.

“Nosso objetivo não é ter seguidores, é alcançar pessoas. Quantas mais verem, melhor, já que queremos conscientizar sobre a doação de órgãos”. Michelle Machado Cruvinel Lacerda

O grande dia: ‘Lalá tem vontade de viver’

Lavínia usava uma medicação na veia para manter o coração funcionando. A ansiedade pelo transplante crescia a cada dia, principalmente depois que um colega da UTI fez o procedimento no início de maio.

“Todo dia ela falava ‘eu acho que é amanhã’. Eu percebi que ela começou a ficar ansiosa, mas o médico veio, explicou, conversou”

Michelle Machado Cruvinel Lacerda

A notícia tão esperada chegou na terça-feira passada (30). Lavínia fez o transplante de coração após muita expectativa. “Meu coração está chegando, e junto dele vem amor. Muito amor”, disse a menina em vídeo compartilhado nas redes sociais.

A família foi informada sobre um possível doador, mas exames ainda precisavam comprovar a compatibilidade dos perfis. Com os dados confirmados, a menina foi levada em poucos minutos ao centro cirúrgico.

“Fazer o transplante é o que ela mais queria e ela foi sorrindo para a cirurgia. A Lalá tem vontade de viver e experimentar o que não conhece, como natação, patins, pula-pula, andar bastante e correr na praia”

Michelle Machado Cruvinel Lacerda

A cirurgia durou quatro horas e correu bem. A recuperação está ótima, com o coração “perfeito e saudável”, diz a mãe da menina. Ela ficará internada por no mínimo mais 30 dias, para fazer uma segunda biópsia e avaliar se há grau de rejeição do órgão —que, caso detectada, é tratada com medicação.

É preciso falar sobre a doação de órgãos. No mesmo dia em que a Lavínia fez o transplante, uma garotinha de 4 anos faleceu na fila de espera. Isso dói em nós mães. Todos merecem a chance de viver. Vamos continuar com a campanha, mostrando o lado das pessoas que esperam por um órgão, o lado de quem doa, e agora como é a vida após o transplante”.

Michelle Machado Cruvinel Lacerda

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Entenda a miocardite hipertrófica, doença de Lavínia

A doença é genética na maioria dos casos. E se caracteriza pelo crescimento do ventrículo esquerdo sem causa definida.

Pessoas da mesma família podem ter evoluções diferentes da doença. Uma tia-avó de Michelle, por exemplo, tem a cardiomiopatia hipertrófica, e aos 70 anos nunca teve complicações graves. Por que isso acontece? Porque genes diferentes podem ser afetados, e é isso que indica a evolução da doença.

“A mesma doença pode ter expressões genéticas diferentes”, explica a cardiologista Rica Buchler, diretora de cardiologia do esporte e de reabilitação cardíaca do Instituto Dante Pazzanese (SP)

Quais são os sintomas?

  • Cansaço;
  • Sensação do coração disparar ou bater em ritmo diferente;
  • Falta de ar;
  • Fígado aumentado ou rebaixado;
  • Arritmias;
  • Desmaios;
  • Palpitação;
  • Morte por parada cardíaca pode ser o primeiro sinal em pessoas assintomáticas.

Diagnóstico por exames simples

Não é possível fazer o diagnóstico antes do nascimento, mesmo com ecocardiograma fetal.

Os exames para identificar a condição são o ecocardiograma e o eletrocardiograma. “Uma vez diagnosticada, geralmente se proíbe a atividade física até se entender a doença”, diz Buchler.

Ressonâncias periódicas são recomendadas para acompanhar a doença.

Tem tratamento?

Sim. O surgimento e gravidade das arritmias indicam como será o tratamento. A intervenção inicial envolve um conjunto de medicações. Se o paciente não fica estável, a orientação é encaminhá-lo para a cirurgia, como a de Lavínia, para colocar o aparelho semelhante ao marca-passo.

Há retirada da parte do músculo mais grosso e a implantação de aparelho igual a um marca-passo, que auxilia em caso de arritmia, sobretudo ventricular, na parte de baixo do coração, onde está mais hipertrófico.

Cristiane Binotto, cardiologista pediátrica

Se não há resposta ao tratamento, os pacientes entram na fila do transplante

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