Não há consenso entre os médicos sobre a suposta transferência de compulsões, mas pessoas que sofrem de obesidade têm uma propensão maior a ficar viciado em alguma coisa
Atualmente, 34% dos adultos brasileiros têm obesidade e esse número vem aumentando. Muitas vezes, o problema pode ser contornado ou amenizado com mudanças nos hábitos alimentares e a prática de exercícios físicos. Mas quando a cirurgia bariátrica é indicada, um dos pré-requisitos para operar é estar livre do alcoolismo ou não ter histórico de uso abusivo de álcool.
🚨 🍷 Uma dose de bebida alcoólica para uma pessoa submetida a cirurgia bariátrica equivale a duas ou até três doses para uma pessoa que não é operada.
Estudos indicam que a dosagem de álcool no sangue em pessoas que fizeram a cirurgia é 28% maior após uma dose de bebida alcoólica do que numa pessoa que não passou pelo procedimento, segundo Jaqueline Rizzoli – médica endocrinologista e membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e Coordenadora do departamento de Cirurgia Bariátrica da Associação Brasileira para o estudo da Obesidade (ABESO).
“Geralmente, os próprios pacientes contam que ficam alterados muito rapidamente. A gente não tem estudos que mostrem dose segura de álcool para quem é operado, assim como a gente não tem, por exemplo, para gestantes”, acrescenta a médica.
Como o álcool é digerido em pacientes que fizeram a cirurgia bariátrica
O álcool chega no estômago e é quebrado em menores partículas para a absorção por uma enzima chamada álcool desidrogenase (ADH). No caso dos pacientes que fizeram a bariátrica, com um estômago bastante reduzido de tamanho, o contato do álcool com essa enzima fica muito menor por conta do tamanho do estômago. Sendo assim, o álcool chega no intestino, na área de absorção, ainda com uma digestão incompleta e é absorvido rapidamente.
⚠️ Como o álcool chega menos digerido, ele também tem uma passagem pelo fígado maior e pode causar mais lesão hepática, além de chegar mais rapidamente no sistema nervoso central.
A relação entre a obesidade e os vícios
Além disso, pessoas que sofrem de obesidade têm uma “dimensionalidade aditiva”, que é uma propensão maior a ficar viciado em alguma coisa, como explica o médico psiquiatra e coordenador do núcleo de saúde mental da (Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, Helio Tonelli.
“Essa dimensionalidade aditiva está muito mais associada a pessoas que sofrem de obesidade e também de transtorno psicológico, depressão, ansiedade, e às vezes até transtornos de personalidade”, acrescenta Tonelli.
Transferência de compulsões é controversa
A suposta transferência de compulsões é mais controversa e não existe evidência científica de que essa compulsão pelo alimento de fato exista, apesar de muitas pessoas se autodeclararem viciadas em comida.
De acordo com a literatura médica, nenhuma substância no alimento, seja sal, açúcar, ou alimento processado, por exemplo, age diretamente no cérebro de forma a promover vício, como faz a nicotina e a cocaína, segundo alguns autores. Eles argumentam que não existe vício em comida. Da mesma forma que as pessoas não se viciam em cartas de baralho. Elas se viciam no jogo.
Dos pacientes que realizam a bariátrica, 75% são mulheres. Mas a população mais propensa a desenvolver transtornos por uso de substâncias depois da cirurgia bariátrica é o paciente homem, jovem, que faz uso problemático de álcool e recreativo de outras substâncias antes da cirurgia.
Tipos de cirurgia
As cirurgias bariátricas mais realizadas no Brasil são a sleeve e o bypass gástrico.
- Bypass gástrico (ou gastroplastia “Y de Roux”): o tamanho do estômago é reduzido consideravelmente, deixando o órgão com apenas 10% do tamanho original, por meio de grampeamento de parte do órgão. Também é feito um desvio do estômago ao intestino inicial que diminui a quantidade de alimentos ingeridos.
- Sleeve (gastrectomia vertical): o estômago tem cerca de 70% a 85% do seu tamanho reduzido. Nesta técnica, não há desvio para o intestino e a cirurgia é feita exclusivamente no estômago.
A maioria dos estudos sugere que o bypass gástrico envolve maiores riscos de abuso de álcool após a cirurgia do que a técnica de sleeve, segundo o psiquiatra Tonelli. Mas nenhuma das duas técnicas isenta o paciente de riscos, afirmam especialistas.
No início da cirurgia bariátrica, era utilizada uma técnica que consistia na colocação de um anel em volta do estômago (Gastroplastia a Fobi-Capella). O paciente encontrava dificuldade de digestão, principalmente em relação a alguns tipos de proteínas animais, e ocorria uma tendência à troca para carboidratos. Em alguns casos, alguns pacientes caminhavam para o alcoolismo.
Porém, mas com as técnicas atuais, a transferência de compulsão da comida para o álcool tem hoje um risco menor do que antes, destaca o coordenador do setor de Cirurgia Geral e Diretor do Centro de Cirurgia Bariátrica do Hospital Mater Dei Marcus Martins.
“É muito importante dizer que pacientes com obesidade e compulsão alimentar são um grupo particularmente vulnerável por se tratar de uma população com maiores dificuldades para lidar com emoções desagradáveis. Estas pessoas podem usar o álcool como um regulador destas emoções já nos primeiros meses após a cirurgia”, acrescenta Tonelli.
Como diminuir o risco de desenvolver o alcoolismo após a bariátrica?
O pré-operatório deve incluir uma avaliação psicológica e psiquiátrica com foco nos antecedentes de uso de álcool e outras substâncias, histórico de transtornos mentais como a ansiedade e a depressão, e de características de personalidade potencialmente problemáticas como o neuroticismo (tendência aumentada de sentir emoções negativas). Além disso, o acompanhamento destas condições é importante no pós-operatório da cirurgia bariátrica.
O acompanhamento psiquiátrico e psicológico após a cirurgia
O ideal é que o acompanhamento psiquiátrico e psicológico dure de um a dois anos, e depois ocorra anualmente por toda a vida, segundo o médico Marcus Martins.*
O especialista destaca que um ponto muito importante para o sucesso da cirurgia bariátrica é que o paciente tenha ciência de que, após o procedimento, ele precisará mudar seus hábitos:
“É necessário um autocontrole após a cirurgia. O que observamos hoje no consultório são pacientes que chegam dispostos a construírem hábitos saudáveis em relação à comida, bebida e exercícios físicos. Todo processo clínico precisa da aderência e comprometimento do paciente”.