Hipótese de ligação entre doenças volta à tona com novos estudos, que apontam aumento do risco após infecções virais

Pesquisadores identificam proteínas do vírus HSV-1 em regiões afetadas pelo Alzheimer.
Estudos publicados em revistas científicas de prestígio sustentam a hipótese de que há ligações entre a doença de Alzheimer e a exposição ao vírus do herpes. As pesquisas continuam para confirmar ou não esse cenário, considerando que o Alzheimer é uma patologia complexa, muito provavelmente determinada por múltiplos fatores de risco.
A doença de Alzheimer é uma patologia neurodegenerativa que, em sua forma mais comum, atinge pessoas idosas. Estima-se que cerca de 1,2 milhão de pessoas sofram de doenças neurodegenerativas do tipo Alzheimer na França. No Brasil o valor é o aproximadamente o mesmo, com cerca de 100 mil novos casos são diagnosticados anualmente, conforme o Ministério da Saúde
Descoberta há um século, essa patologia continua amplamente enigmática, e os mecanismos exatos por trás de seu surgimento e evolução ainda são mal compreendidos. Entre as hipóteses em investigação, a de uma ligação entre Alzheimer e exposição ao vírus do herpes tem ganhado força com publicações recentes.
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Lesões cerebrais causadoras de comprometimento cognitivo grave
A doença de Alzheimer é caracterizada por um conjunto de lesões microscópicas inicialmente confinadas a certas regiões do cérebro. Essas lesões se propagam, com o avanço da doença, por diversas áreas cerebrais.
Essa progressão lenta e previsível das lesões cerebrais é acompanhada por sintomas clínicos graduais (problemas de memória, perturbações na linguagem, dificuldade de raciocínio e planejamento, etc.). Os pacientes desenvolvem, assim, um transtorno neuro cognitivo maior (frequentemente chamado de demência), que leva à perda de autonomia, ao isolamento social e à perda das funções mentais mais complexas e representativas do ser humano.
As lesões cerebrais responsáveis por esses sintomas clínicos dramáticos são, de maneira geral, de dois tipos:
- Lesões presentes dentro dos neurônios, sob forma de emaranhados fibrilares (chamados de “degeneração neurofibrilar”) compostos pela proteína tau, acumulada de forma anormal.
- Lesões identificadas no espaço extracelular do tecido cerebral, sob a forma de placas cuja composição química é principalmente de uma proteína chamada peptídeo beta-amiloide (Aβ): as chamadas placas amiloides.
As degenerações neurofibrilares e as placas amiloides constituem a assinatura neuropatológica do Alzheimer. No entanto, outras lesões também são observadas nos cérebros dos pacientes.
Até hoje, nenhum tratamento preventivo ou curativo
Em relação aos mecanismos da doença, um avanço importante ocorreu nos anos 1990 com a identificação, em certos pacientes, de mutações genéticas envolvidas na produção do peptídeo Aβ.
Essas descobertas permitiram formular a hipótese da “cascata amiloide”, segundo a qual a acumulação do peptídeo Aβ no cérebro seria o evento inicial que desencadearia as demais lesões cerebrais, levando à demência.
No entanto, essas mutações, responsáveis pela superprodução de Aβ, afetam apenas uma minoria ínfima dos pacientes (menos de 1%), e é provável que uma multiplicidade de outros fatores esteja envolvida na doença.
Dado o conhecimento ainda limitado sobre os mecanismos responsáveis pelo Alzheimer, não surpreende que ainda não exista um tratamento preventivo ou curativo eficaz, apesar dos grandes esforços em pesquisa terapêutica.
Identificar os fatores causais da doença e os elementos que modulam seu risco ou trajetória é uma prioridade e mobiliza muitas equipes científicas.
Possíveis ligações entre Alzheimer e o vírus do herpes
Recentemente, um artigo na prestigiada revista Neuron apresentou dados inéditos. O estudo analisou duas grandes coortes de milhares de pessoas na Finlândia e no Reino Unido e mostrou que uma encefalite viral (inflamação cerebral causada por infecção viral) aumenta de 20 a 30 vezes o risco de desenvolver Alzheimer posteriormente.
Esses resultados seguem outras pesquisas internacionais que indicaram risco aumentado de Alzheimer após infecção pelo vírus do herpes simples tipo 1 (HSV-1), um vírus altamente neurotrópico (com capacidade de atingir o cérebro). Esses estudos também apontaram que tratamentos antivirais têm efeito protetor (reduzem o risco de Alzheimer).
Mais recentemente, estudos quase experimentais em populações humanas mostraram, no País de Gales, na Austrália e nos EUA, que a vacinação contra o vírus varicela-zoster (VZV), da mesma família do herpes (HSV-1), reduz significativamente o risco de desenvolver demência.
Uma hipótese já proposta há 40 anos

Estudo internacional revela que infecções virais, como herpes e encefalite, podem aumentar em até 30 vezes o risco de desenvolver Alzheimer.
A hipótese de que vírus — especialmente os da família herpes — estariam envolvidos no Alzheimer não é nova. Há mais de 40 anos, o neurologista canadense Melvyn Ball sugeriu que reativações do HSV-1 (como as causadoras de herpes labial) poderiam acompanhar uma neuroinvasão (entrada do vírus no cérebro), causando degeneração do tecido cerebral e desencadeando demência do tipo Alzheimer.
Pesquisas posteriores reforçaram essa hipótese, identificando “assinaturas virais” (proteínas ou material genético do vírus) nos cérebros de pacientes com Alzheimer, inclusive nas placas amiloides.
Essas observações e os primeiros estudos epidemiológicos, no entanto, devem ser analisados com cautela: uma associação entre infecção e Alzheimer não prova uma relação de causa e efeito.
Pode-se até argumentar, de forma provocativa, o Alzheimer que torna o organismo mais suscetível a infecções virais (e não o contrário), o que explicaria a presença de material viral nos cérebros dos pacientes.
Alzheimer e HSV-1: por que a pesquisa se intensifica agora
A hipótese infecciosa do Alzheimer ganhou reforço mais recentemente com duas séries de descobertas experimentais:
Descobriu-se que o peptídeo Aβ, presente nas placas amiloides, tem funções antimicrobianas e pode participar da resposta imunológica contra infecções virais.
Em laboratório (em culturas celulares e modelos animais), foi possível induzir superprodução de Aβ e proteínas tau patológicas após infecção pelo HSV-1, sendo a proteína tau outro marcador molecular do Alzheimer.
Um cenário hipotético em várias etapas
A compreensão da relação entre infecções virais e Alzheimer avançou, e novas hipóteses surgem. No caso do HSV-1, o cenário proposto é:
- A infecção pelo HSV-1 é comum e o vírus pode permanecer latente por décadas em gânglios nervosos.
- Com o envelhecimento, o corpo enfrenta estresses diversos e uma queda nas defesas imunológicas, o que favorece a reativação do vírus e sua propagação no cérebro.
- A presença do vírus ativo no cérebro gera uma resposta local de produção de Aβ e tau, de forma silenciosa.
- Essas lesões, associadas à inflamação cerebral, iniciam um círculo vicioso de autoamplificação que leva à intensificação e disseminação das lesões em outras áreas cerebrais.
Esse cenário ainda é hipotético e exigirá muito esforço de pesquisa para ser validado (ou refutado, como é o caminho da ciência!). Estudos em animais e em organoides cerebrais (estruturas tridimensionais de tecido neural) serão necessários para entender melhor a relação causal entre infecção e os marcadores biológicos do Alzheimer.
Pesquisas continuam
Estudos epidemiológicos em humanos também continuam, buscando entender melhor como os níveis de infecção influenciam o surgimento ou agravamento dos biomarcadores do Alzheimer.
No fim das contas, diversas áreas do conhecimento são mobilizadas, como virologia, neurologia, epidemiologia, patologia, e exigem colaboração intensa e troca de ideias.
Confirmar o papel de agentes virais no Alzheimer, assim como em outras doenças neurodegenerativas (como a esclerose múltipla, associada ao vírus Epstein-Barr, outro vírus da família herpes), abriria caminhos para novas abordagens preventivas (vacinas) e terapêuticas (antivirais).
Mas é importante lembrar: o Alzheimer é uma doença extremamente complexa e resulta certamente de múltiplos fatores genéticos e ambientais. Atribuir sua causa exclusivamente a uma infecção viral anterior é um erro evidente. Vale lembrar que, embora entre 70% e 80% da população mundial seja infectada pelo HSV-1, isso não significa que todos desenvolverão Alzheimer.
*Benoît Delatour é diretor de Pesquisa do CNRS no Instituto do Cérebro (ICM) na Universidade Sorbonne, na França.
*Este artigo foi republicado de The Conversation sob licença Creative Commons. Leia o original.