Ferramentas prometem reduzir a subjetividade em análises de óvulos, embriões e ciclos de FIV, mas especialistas alertam que o uso ainda e carece de validação robusta
Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein

A jornada de quem passa pela reprodução assistida ainda esbarra na imprevisibilidade. Mesmo com os avanços da fertilização in vitro (FIV), a resposta do corpo aos hormônios varia entre mulheres, a qualidade dos óvulos nem sempre é previsível e a definição do número ideal de ciclos permanece incerta. Nesse cenário, ferramentas de inteligência artificial (IA) surgem como aliadas.
O assunto foi destaque no último Congresso Brasileiro de Reprodução Assistida, realizado em outubro em São Paulo. “O uso de inteligência artificial na reprodução humana não é tão novo. Ele vem sendo amplamente estudado, mas ganhou precisão e aplicabilidade nos últimos cinco anos”, explica o ginecologista José Pedro Parise Filho, especialista em reprodução assistida do Einstein Hospital Israelita.
Essa subjetividade nos tratamentos de reprodução assistida acompanha praticamente todas as decisões clínicas da área. Embriologistas, mesmo experientes e altamente treinados, ainda dependem de avaliação visual e da própria experiência para selecionar óvulos, espermatozoides e embriões, num processo técnico, porém sujeito à interpretação humana.
Pequenas diferenças de interpretação podem levar a escolhas distintas, sendo esse um dos motivos pelos quais as taxas de sucesso da FIV se mantêm relativamente estáveis ao longo dos anos. “A IA ajuda a padronizar avaliações e enxergar padrões que simplesmente não são perceptíveis ao olho humano”, diz Parise Filho, que também é médico assistente do Centro de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
A tecnologia já apoia diversas etapas da FIV. “Existem algoritmos para triagem de casais para ovodoação e recepção, análise de gametas, seleção embrionária e previsão de resultados clínicos. Mas é importante reforçar que esses sistemas ainda não substituem os processos padrão-ouro. A função principal hoje é reduzir variabilidade entre profissionais”, observa o ginecologista Roberto de Azevedo Antunes, presidente eleito para a próxima gestão da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA).
Entre as ferramentas disponíveis existem aquelas desenvolvidas para analisar óvulos e orientar escolhas durante o congelamento ou a FIV. Elas identificam padrões microscópicos, simetria, granulosidade, integridade e padrões microscópicos invisíveis ao olho humano. “Já existem softwares comerciais capazes de avaliar óvulos, calcular a probabilidade de sucesso e sugerir quais devem ser priorizados”, afirma Parise. Mas, segundo o especialista do Einstein, essas tecnologias ainda carecem de validação que comprove impacto real nas taxas de nascidos vivos.
A análise de embriões também evoluiu com incubadoras time-lapse, que geram modelos preditivos sobre viabilidade. Esse sistema fornece registros ininterruptos de imagens dos embriões, que são avaliados sem necessidade de abrir o equipamento. Os resultados atuais, porém, apresentam eficácia de 60% a 70%. “A tecnologia é promissora, mas ainda precisa mostrar impacto real antes de ser adotada como padrão”, pondera Antunes.
Outra aplicação em estudo é o uso da IA na fase de planejamento do estímulo ovariano. As ferramentas analisam uma série de características e exames e sugerem doses de medicação para o alvo de óvulos desejados. “Temos visto melhora em casos selecionados quando utilizamos essas ferramentas como suporte à decisão clínica. Mas, pela pouca validação e risco de erros, elas são usadas como complemento, nunca isoladamente”, afirma José Pedro Parise.
A IA também gera o chamado “escore de viabilidade”, que estima a chance de cada óvulo ou embrião resultar em gestação, oferecendo relatórios personalizados. Isso significa que, em vez de depender apenas de médias populacionais, os pacientes recebem projeções personalizadas sobre a probabilidade de cada óvulo ou embrião gerar uma gravidez. Isso diminui a sensação de tentativa e erro.
“É um cálculo baseado na comparação de dados e imagens com bancos que reúnem milhares de casos. Do ponto de vista clínico, esse cálculo pode auxiliar na decisão de como planejar e conduzir o tratamento. Mas ainda precisamos de maior validação científica que confirme esse benefício e justifique o custo”, frisa o médico do Einstein.
Nos laboratórios, a IA já ajuda a reduzir erros e padronizar etapas críticas, especialmente na classificação embrionária. Contudo, a tecnologia não substitui o componente humano. “Ela é uma ferramenta complementar. O cuidado emocional, a informação clara e a presença ativa do médico continuam centrais. A IA deve liberar tempo para o profissional se aproximar do paciente, não o afastar”, pontua o presidente da SBRA.
Alto custo
O valor elevado é um obstáculo à adoção ampla dessas ferramentas. Licenças, infraestrutura e treinamento encarecem processos em um tratamento já oneroso. Um ciclo de reprodução assistida pode custar entre R$ 15 mil e R$ 45 mil, dependendo do local, da quantidade de medicação e do profissional.
O uso das ferramentas de IA custa entre R$ 1.000 e R$ 3.000, também a depender do caso. “Precisamos de ferramentas brasileiras para reduzir custos, e de estudos independentes de custo-efetividade que mostrem onde a IA realmente economiza recursos, como medicação ou ciclos desnecessários”, pondera Parise.
No Brasil, o mais comum é que todo o investimento recaia sobre o paciente, pois são poucos centros que fazem parte ou 100% do tratamento sem custo. “Por isso é essencial que cada tecnologia prove benefício real antes de ser incorporada”, reforça Roberto Antunes.
Para os próximos anos, a integração de dados clínicos, genéticos, hormonais e de imagem deve transformar o modelo atual em uma medicina de precisão. “Com essa integração, será possível personalizar dose hormonal, prever número de óvulos necessários, estimar riscos e direcionar quem realmente se beneficia de exames adicionais ou intervenções específicas”, projeta o especialista da SBRA.
Diante do avanço tecnológico, crescem também as preocupações éticas. A SBRA orienta que todo uso de IA siga a Lei Geral de Proteção de Dados, mantenha supervisão humana obrigatória e tenha total transparência com o paciente.


