Combate à pandemia ensina lições para erradicação das doenças tropicais negligenciadas


André Julião | Agência FAPESP – Enquanto o mundo luta contra a pandemia de COVID-19, um conjunto de 20 doenças conhecidas há muitos anos, mas ainda sem tratamentos eficazes ou vacinas, mata até 500 mil pessoas por ano, a imensa maioria pobres. O combate às chamadas doenças tropicais negligenciadas (DTNs), que afetam uma em cada cinco pessoas, ganhou um novo plano de ação da Organização Mundial da Saúde (OMS), com metas para serem cumpridas até 2030. Além disso, como forma de engajar o público na causa, mais de 300 organizações celebraram, em 30 de janeiro, o Dia Mundial para Doenças Tropicais Negligenciadas.

A erradicação ou mesmo a diminuição dos casos dessas 20 enfermidades, que incluem leishmaniose, doença de Chagas, dengue e zika, passa necessariamente pela compreensão dos agentes infecciosos e pelo desenvolvimento de medicamentos e vacinas seguras, eficazes e acessíveis. Por isso, especialistas apontam como essencial o investimento em pesquisa e desenvolvimento.

“Hoje há mais de 1,7 bilhão de pessoas no mundo afetadas por essas doenças, que causam não apenas mortes, mas uma grande morbidade, tirando muitos anos de vida útil de quem sobrevive. O Brasil, que reúne grande parte das 20 doenças tropicais negligenciadas, é líder na América Latina em casos de doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, dengue e esquistossomose”, disse à Agência FAPESP Adriano Andricopulo, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP).

Enfermidades que afetam 1,7 bilhão de pessoas no mundo, sobretudo pobres, recebem pouca atenção da indústria e baixo investimento público; projetos de pesquisa buscam compreender mecanismos de parasitas e desenvolver medicamentos baratos, seguros e eficazes (pesquisa de tracoma no Nepal; foto: OMS)

O pesquisador coordena o projeto “Descoberta de fármacos baseada na estrutura do receptor e do ligante para a Leishmaniose e a Doença de Chagas a partir de produtos naturais bioativos”, financiado pela FAPESP e pelo Medical Research Council, do Reino Unido, numa parceria com a Universidade de Dundee, na Escócia.

Andricopulo é ainda pesquisador e coordenador de transferência de tecnologia do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), um CEPID apoiado pela FAPESP no IFSC-USP. Atualmente, o grupo conta com dez candidatos a medicamento contra Chagas e cerca de 20 para leishmaniose.

Consórcio internacional

O CIBFar integra o consórcio formado pela USP e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para a descoberta de medicamentos contra malária e doenças negligenciadas. Financiado pela FAPESP e pelas organizações sem fins lucrativos Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) e Medicines for Malaria Venture (MMV), o projeto faz parte do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da FAPESP.

O objetivo do consórcio, firmado no fim de 2020, é desenvolver moléculas que possam ser candidatas a testes clínicos para leishmaniose, Chagas e malária. Esta última não faz parte da lista de 20 doenças tropicais negligenciadas da OMS, por já contar com alternativas farmacológicas e mesmo uma vacina, ainda que com uma eficácia de cerca de 30% em quatro doses (leia mais sobre o consórcio em: agencia.fapesp.br/32127/).

“Eu costumo dizer que a malária não é uma doença tropical negligenciada, mas é uma doença que afeta pessoas negligenciadas”, diz Luiz Carlos Dias, professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp e coordenador do projeto.

Segundo dados da OMS, em 2018 a malária matou 405 mil pessoas, 67% delas crianças com menos de cinco anos. O parasita é conhecido por criar resistência rapidamente a medicamentos. E os disponíveis atualmente precisam ser ministrados em três doses ou mais. Por isso, o grupo liderado por Dias busca um fármaco que seja seguro para crianças e mulheres grávidas, os grupos mais vulneráveis, e que possa ser administrado por via oral em uma única dose. No caso da doença de Chagas, uma vez que não há boas opções farmacológicas atualmente, o grupo admite uma alternativa que seja fracionada em mais doses.

“Os desafios são imensos. Em diversos momentos tivemos séries químicas muito promissoras, mas, à medida que os testes avançam descobrimos um possível efeito adverso. Quando isso ocorre, fazemos ajustes, mas isso pode gerar outro efeito indesejado, como perda de eficácia, por exemplo. Chega uma hora que é melhor descartar a possibilidade e começar tudo de novo com outra série química. É uma régua muito comprida a que nos submetemos”, explica o pesquisador, que atualmente realiza ensaios in vitro tanto para malária quanto para doença de Chagas.

Lições da pandemia

Para Dias, a pandemia de COVID-19 tem mostrado como investimentos de longo prazo, compartilhamento de informações e recursos humanos qualificados fazem a diferença no combate a doenças infecciosas. Além disso, o combate ao novo coronavírus mostrou que é possível acelerar as fases de desenvolvimento de medicamentos e vacinas sem diminuir a segurança e a eficácia.

“O Brasil tem cientistas excepcionais e muita capacidade instalada, mas nos últimos anos perdeu muitas verbas para pesquisa. A pandemia tem mostrado a importância de investimentos maciços e contínuos, além de uma indústria nacional de insumos farmacêuticos. Hoje temos uma dependência muito grande da Índia e da China, principalmente, para esses produtos”, afirma o pesquisador.

Para Charles Mowbray, diretor de pesquisa e desenvolvimento da DNDi, uma das financiadoras do consórcio, além do desenvolvimento mais rápido de medicamentos e vacinas, a pandemia mostrou a necessidade de múltiplas abordagens em paralelo, como medicamentos e vacinas, para enfrentar desafios como resistência e novas variantes dos patógenos.

“Temos ainda de garantir que novos avanços que aplicam as últimas tecnologias sejam disponibilizados para todos que precisam, não apenas para aqueles que podem pagar por elas”, aponta o cientista.

Andricopulo acredita que já haveria soluções terapêuticas para grande parte das doenças tropicais negligenciadas se houvesse uma mobilização semelhante à que está ocorrendo agora para o combate à pandemia de COVID-19. “No entanto, os investimentos em pesquisas nessa área são muito limitados. No século 21, não foi produzido nenhum medicamento inovador para qualquer uma das 20 doenças tropicais negligenciadas. Esse é um grande problema”, diz (leia mais em: agencia.fapesp.br/29753/).

Nos últimos anos, no entanto, iniciativas sem fins lucrativos como a DNDi e a Fundação Bill & Melinda Gates têm investido na busca por medicamentos baratos e eficazes contra essas doenças. O pesquisador da USP lembra ainda medidas de incentivo à indústria farmacêutica, que historicamente não investe no desenvolvimento de medicamentos para essas doenças porque não têm expectativa de lucro. Os projetos de desenvolvimento de novos fármacos nessa área levam em conta que eles devem ser doados ou vendidos a governos a preço de custo.

Desde 2008, a Food and Drug Administration (FDA, agência norte-americana que regula medicamentos) reduz em até um ano o tempo de liberação de fármacos potencialmente lucrativos (para câncer ou doenças cardiovasculares, por exemplo) se a empresa que submeteu o pedido faz investimentos em pesquisas para doenças negligenciadas.

Ciência básica

É impossível desenvolver medicamentos, contudo, sem a compreensão dos agentes que causam as doenças, ou seja, dos vírus, bactérias e parasitas. Projetos financiados pela FAPESP nos últimos anos têm buscado realizar esse trabalho, alguns em colaboração com parceiros internacionais como o Medical Research Council e o Newton Fund, do Reino Unido.

Um exemplo é o Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), projeto coordenado por Ester Sabino, professora do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP. Originalmente destinado ao estudo de doenças como dengue e zika, o CADDE que tem sido fundamental, ainda, no combate ao novo coronavírus (leia mais em: agencia.fapesp.br/34968/).

“O convênio com o Reino Unido é uma experiência de muito sucesso, que inclusive está sendo ampliada. Tínhamos chamadas em períodos específicos e agora elas estão em fluxo contínuo. Ou seja, em qualquer momento do ano pesquisadores do Estado de São Paulo podem submeter propostas em colaboração. Hoje temos várias redes, com gente de peso do Brasil e do Reino Unido, formando grupos em que há um respeito cada vez maior à comunidade científica brasileira”, conta Angela Kaysel Cruz https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/868/, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e coordenadora da área de Biologia II da FAPESP.

A pesquisadora atuou como membro de comitês de assessoramento e grupos de trabalho da Divisão de Pesquisa em Doenças Tropicais da OMS entre 1997 e 2006. Atualmente, coordena o Centro Reino Unido-Brasil para o Estudo da Leishmaniose (JCPiL), que tem diferentes linhas de pesquisa sobre o parasita causador da doença, como a compreensão da diversidade genética, virulência, mecanismos de resistência, entre outros.

“Os parasitas da leishmaniose, da doença do sono e da doença de Chagas são todos da mesma família, mas têm comportamentos muito diferentes entre si. São seres muito bem adaptados, que surgiram na Terra praticamente junto com os mamíferos. Essa é uma das razões pela qual ainda são tão difíceis de combater”, afirma Marcelo Santos da Silva, pesquisador do Instituto de Biociências de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista (IBB-Unesp).

Silva coordena um projeto financiado pela FAPESP na modalidade Jovem Pesquisador que estuda um grupo especializado de moléculas presentes nesses parasitas. O trabalho busca compreender o papel delas no ciclo de vida dos tripanossomatídeos, a fim de verificar a possibilidade de serem exploradas futuramente como alvos de medicamentos.

“Enfrentar as doenças tropicais negligenciadas é um grande desafio, que não será solucionado por uma única organização. Unir cientistas comprometidos do mundo todo é o caminho do sucesso e elogio a FAPESP por essa abordagem. Parcerias como a da DNDi com a Fundação ajudam a trazer consciência sobre a necessidade de pesquisa e desenvolvimento para essas doenças, descobrir novos medicamentos e ajudar a capacitar mais jovens pesquisadores, que continuarão esse trabalho ao longo de suas carreiras”, encerra Mowbray, da DNDi.

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