Julia Moióli | Agência FAPESP – Entre as muitas descobertas resultantes do Projeto Genoma Humano, concluído em 2003, está o fato de que grande parte dos genes humanos não gera RNAs que codificam proteínas – na verdade, apenas cerca de 5% têm essa função. Trata-se de uma classe que ficou conhecida como DNA lixo e que, durante as duas últimas décadas, foi deixada de lado quando o assunto é o tratamento de doenças como câncer. Se até agora os grandes alvos terapêuticos têm sido os RNAs mensageiros (que servem de molde para a síntese de proteínas), atualmente os pesquisadores chegam cada vez mais perto de descobrir que esses RNAs não codificadores podem, sim, ter funções importantes. É o caso de um estudo publicado recentemente na revista Cellular Oncology, que concluiu que RNAs longos não codificadores (lncRNAs) podem ter atuação no câncer de pâncreas.
O trabalho – que contou com apoio da FAPESP (projetos 13/13844-2, 13/13350-0, 14/03943-6 e 19/04420-0) e foi realizado por uma equipe multidisciplinar composta por bioquímicos, biólogos moleculares e celulares, bioinformatas e médicos – analisou um conjunto de lncRNAs em linhagens celulares de tumor de pâncreas e utilizou, em laboratório, ferramentas específicas para manipular sua expressão gênica. O resultado foi a confirmação de seu caráter oncogênico, ou seja, sua expressão favorece a formação de tumores.
“Percebemos que, ao silenciar os lncRNAs, características da célula tumoral foram reduzidas e ela se tornava menos agressiva e maligna porque se proliferava menos, migrava menos, invadia menos e fazia menos reparo de DNA”, afirma Eduardo M. Reis, professor do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).
De acordo com o pesquisador, esses resultados fazem avançar a compreensão sobre o câncer de pâncreas, que, mesmo não tendo incidência tão alta quanto outros tipos de tumores, é letal e tem opções de tratamento mais limitadas.
“Desde que se começou a estudar a biologia molecular e a utilizar ferramentas de sequenciamento de nova geração para identificar novos marcadores, diversos tumores passaram a contar com melhores tratamentos, que causaram um impacto muito positivo na sobrevida, por exemplo, de pacientes com câncer de mama, de pulmão e de próstata”, conta Reis. “Infelizmente não foi o caso do câncer de pâncreas.”
O próximo passo agora é manipular e silenciar a atividade desses RNAs longos não codificadores em modelos tumorais in vivo, em que fragmentos de tumores de pacientes são implantados e mantidos em camundongos (xenotumores). A meta é confirmar se é possível reduzir, de fato e na prática, a agressividade do tumor.
Em paralelo, além de fragmentos de tumores, os pesquisadores que atuam com Reis também analisam bancos de dados de sequenciamento de RNA de célula única (do inglês, single-cell RNA-Seq). Com esse tipo de análise é possível obter o transcriptoma (conjunto de RNAs transcritos) de cada uma das células que compõem um tecido, em vez de olhar o tecido como um todo. A ideia é verificar também a atividade desses lncRNAs nos diferentes tipos celulares que compõem o microambiente do tumor e, dessa forma, aprofundar o entendimento de suas funções e possibilidades de uso como biomarcador.
“Diga-me com quem andas…”
Além do aspecto mais aplicado ao tratamento do câncer de pâncreas, o estudo liderado por Reis contribui com uma estratégia para desvendar o mecanismo de ação dos RNAs não codificadores. Sabe-se que eles estão aumentados no tumor e que, quando manipulados, causam efeito na célula. Porém, ainda não se compreende exatamente como isso acontece. Ao contrário dos RNAs mensageiros, cuja função pode ser prevista a partir da proteína codificada em sua sequência, com os lncRNAs isso ainda não é possível.
“É mais ou menos como quando os arqueólogos e pesquisadores encontraram os hieróglifos egípcios em uma língua absolutamente desconhecida e não dispunham da Pedra de Roseta para traduzi-los e entendê-los”, explica Reis. “Para esses lncRNAs, ainda não conhecemos o código que traduz a informação contida na sua sequência primária em uma estrutura tridimensional capaz de exercer funções específicas.”
Para contornar essa limitação, os pesquisadores utilizaram uma abordagem de bioinformática em que a atividade desses RNAs não codificadores é avaliada no contexto de uma rede de coexpressão, junto com a atividade de outros genes codificadores de proteína cuja função já se conhece. Comparando tumores e amostras não tumorais, verificou-se que vários RNAs não codificadores apresentam um padrão de coexpressão semelhante ao de genes codificadores com funções importantes no contexto do câncer. Gerou-se então a seguinte hipótese no estilo “diga-me com quem andas e te direi quem tu és”: se os RNAs têm o mesmo padrão, então podem realizar as mesmas atividades ou estarem submetidos à mesma regulação.
Foi assim que, no estudo, chegou-se à constatação de que o lncRNA UCA1 especificamente é necessário para o reparo de DNA em células tumorais expostas à radiação ionizante. Ou seja, a expressão desse RNA não codificador aparentemente ajuda o tumor a se recuperar dos danos causados pelo tratamento com radioterapia.
Segundo o pesquisador, o estudo contribui com um catálogo relevante de possíveis funções moleculares de lncRNAs oncogênicos que pode ajudar a ampliar as possibilidades de estudo da função dos RNAs não codificadores em cânceres de pâncreas e, consequentemente, levar mais pesquisadores a explorar o desenvolvimento de novas opções terapêuticas.
O artigo Annotation and functional characterization of long noncoding RNAs deregulated in pancreatic adenocarcinoma pode ser lido em: https://link.springer.com/article/10.1007/s13402-022-00678-5.