Nova resolução do CFM proibiu indicação com finalidades estéticas e de performance em meio ao crescimento de ‘chips da beleza’ e similares no país
Quando chegou à menopausa, a professora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), Paula Cavalcanti, de 55 anos, passou a fazer reposição hormonal por indicação médica, na época por via transdérmica – aplicação sobre a pele, em uma espécie de gel. A reposição era feita apenas com doses baixas de testosterona, que embora seja muito mais abundante entre os homens, também é um hormônio produzido por mulheres, e estradiol, um hormônio feminino.
— Quando as consequências começaram, como os fogachos, insônia, instabilidade emocional, busquei uma médica que me indicou a reposição compatível à minha redução hormonal. Dei início e foi muito bom para mim. O sono melhora bastante, os sintomas, o equilíbrio do corpo no geral — conta Paula.
Porém, há um ano, foi oferecida a ela a troca para o formato de implante, popularmente chamado de chip, e, ao fazê-la, aproveitou para acrescentar a gestrinona – um anabolizante presente na maioria dos chamados “chips da beleza” que promete emagrecimento e ganho de músculos. A adição do hormônio, que não é indicado para reposição, levou a efeitos indesejados e graves para Paula.
- Nos primeiros seis meses, não senti muitas consequências. Mas, quando botei pela segunda vez, comecei a perceber que estava passando por picos de agressividade, de instabilidade e um descontrole da libido. Comecei a brigar com meu marido por situações bobas, foi aí que ele percebeu que eu estava mais irritadiça. Fui ao médico e fiz os exames. Os resultados mostraram que eu tive mesmo picos do hormônio, e deixei de usá-lo imediatamente — diz a professora.
Os esteroides anabolizantes ou similares (EAS), como a gestrinona, são formas sintéticas que simulam a testosterona, um hormônio que atua no crescimento da massa muscular e promove o desenvolvimento de características sexuais masculinas, como pelos e barba.
— Eles são utilizados para indivíduos que têm deficiência da testosterona, como homens com hipogonadismo, ou para incongruência de gênero, no caso de hormonioterapia utilizada para homens trans. Essas são as duas grandes indicações hoje, para quem tem falta do hormônio, mas isso precisa ser comprovado e impactar o quadro clínico — explica o presidente do Departamento de Endocrinologia do Exercício e do Esporte da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), Clayton Macedo.
Uma das deficiências em que certos tipos de EAS podem ser indicados a mulheres é de fato durante a menopausa, explica a médica ginecologista, obstetra e mastologista, doutora pela Universidade de São Paulo (USP), Marianne Pinotti. Porém são utilizadas substâncias específicas para isso, o que não é o caso da gestrinona.
— O benefício da reposição hormonal nessa época é atenuar os sintomas da menopausa, que podem ser muito incômodos. É algo positivo, mas são utilizados outros tipos e em doses moderadas. Hoje vemos um abuso nas doses e a junção com outros hormônios, que são esses anabolizantes que ajudam na massa muscular de forma excessiva. Mas não existe estudo na literatura médica comprovando segurança no uso da gestrinona — explica a cirurgiã do hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo.
Ela aponta que, com o avanço dos implantes, o uso tem se tornado indiscriminado e em doses altíssimas, o que acende um alerta devido ao cuidado necessário na hora de receitar a reposição com essa finalidade. Além disso, destaca que não é indicado a jovens, que na maioria das vezes produzem com sucesso seus próprios hormônios.
— Casos raros, como mulheres jovens com problemas de libido, podem ser indicadas doses muito baixas. Mas é a exceção. Hoje sabemos que essa reposição pode aumentar risco para câncer de mama, doenças cardiovasculares e outros problemas para as pacientes com risco. Então tem que ser algo bem avaliado e acompanhado, feito com doses baixas e que não seja por muito tempo — explica.
Nova resolução do CFM trouxe o assunto à tona
Apesar do alerta de especialistas para que o uso dos EAS seja feito apenas nos casos e nas doses indicadas, a busca por “chips da beleza”, “bombas”, oxandrolona e outros anabolizantes com fins estéticos tem se tornado inclusive a maioria das prescrições, aponta Marcelo Bichels Leitão, cardiologista e diretor científico da Sociedade Brasileira de Medicina do Esporte (SBME).
— O mercado cresceu muito. Existem muitos médicos que fazem prescrições inapropriadas, e existe um mercado clandestino muito grande, nas próprias academias, na internet, você vê pessoas vendendo e uma facilidade muito grande no acesso. E os impactos, sejam estéticos ou de ganho de performance, são transitórios e levam a uma série de efeitos colaterais graves — diz o especialista.
A aparente impunidade levou seis sociedades científicas, como a SBEM e a SBME, a pedirem que o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovasse uma regulamentação sobre a indicação das substâncias, tornando-a mais rígida e deixando clara a possibilidade de punições a profissionais que as prescrevem com finalidade estética ou de performance.
A nova resolução foi publicada nesta terça-feira e proibiu a indicação de médicos para o uso com ambas as finalidades ou com qualquer outro fim que não seja a “devida comprovação diagnóstica de sua deficiência (do hormônio)”. A decisão também veta a propaganda dos esteroides e cursos que impulsionam a prescrição no país.
— O que nós queríamos é que existisse esse documento que pontuasse cada um desses itens como sendo de má prática, burlando a ciência, para a partir daí os conselhos terem mais respaldo para punir quem pratica esse tipo de indicação — explica Macedo.
O texto do CFM diz que são permitidas as indicações apenas “em caso de deficiência específica comprovada, de acordo com a existência de nexo causal entre a deficiência e o quadro clínico”, como na menopausa, “ou de deficiências diagnosticadas cuja reposição mostra evidências de benefícios cientificamente comprovados”, como os casos de hipogonadismo.
Quais os principais riscos dos anabolizantes esteroides?
As consequências das substâncias estendem-se a diversos mecanismos diferentes do corpo humano, desde uma masculinização indesejável entre as mulheres, até maior risco para problemas cardíacos e infertilidade entre os homens. Além disso, há os impactos psíquicos, como os vivenciados por Paula, que podem levar a alterações bruscas de comportamento.
— O hormônio é o da fuga, da força, então pode aumentar a agressividade dos indivíduos, e inclusive a probabilidade de tomar uma atitude criminosa. Nosso cérebro é rico em receptores da testosterona, e isso altera o comportamento, dá um grau de irritabilidade. Existe um trabalho dinamarquês que acompanhou durante 12 anos usuários de esteroides e, no final, mais de 20% tinham sido presos por algum crimes não relacionado a fatores socioeconômicos — diz o especialista da SBEM.
Macedo cita um trabalho publicado em 2019 na revista científica Drug and Alcohol Dependence que mostrou um risco nove vezes maior de condenação por um crime entre os usuários dos EAS em comparação com um grupo de controle.
Os efeitos colaterais também são principalmente cardíacos, com um risco aumentado de embolia com trombose, arritmia e de mortalidade no geral. Macedo, que coordena o ambulatório de Endocrinologia do Exercício da Unifesp, serviço de referência para pacientes com sequelas de anabolizantes, conta que recebe muitos pacientes jovens, de 30 a 40 anos, com problemas cardiovasculares graves, como infarto do miocárdio.
Muitas vezes, os indivíduos utilizam doses até 100 vezes o indicado para pessoas com deficiência do hormônio, e as combinam com outras drogas que prometem reduzir os efeitos colaterais – o que também é perigoso.
— Na hora que você está utilizando uma outra medicação ela pode até impedir algumas consequências físicas, mas não vai impedir danos no fígado ou no coração. E o anabolizante aumenta a parede do órgão, o que leva a problemas sérios — explica Andréa Fioretti, endocrinologista e uma das coordenadoras do ambulatório da Unifesp.
Nas mulheres, alguns efeitos mais visíveis observados são a alteração na voz, aumento do clitóris, de pelo, queda de cabelo, irregularidade menstrual, entre outros decorrentes da característica masculinizante do EAS. Além disso, em ambos os sexos pode levar a hepatites, que são inflamações no fígado.
Esteroides podem causar perda de libido e infertilidade nos homens
Outro problema de saúde consequente das drogas que tem chegado com certa frequência nos consultórios são quadros de disfunção na produção natural da testosterona por homens que fazem uso dos esteroides, o que leva à infertilidade e falta de libido.
— Os esteroides acabam inibindo o testísculo porque existe uma fisiologia no corpo humano que é muito inteligente, quando você tem uma glândula que produz um certo hormônio, mas você já está tomando esse hormônio de fora, essa glândula fica inibida como uma defesa do organismo para não ter um excesso de produção. Só que isso pode atrofiar o testículo e impedir a produção natural depois — diz Andréa.
Ela acrescenta que é importante estar atento aos riscos pois o uso a longo prazo pode inclusive causar um quadro de dependência, intensificando os riscos.
— O cérebro passa a ter uma uma alteração que diminui o córtex e aumenta uma área que geralmente está aumentada em usuários de outras drogas. Então antes nós imaginávamos que o usuário mantinha o vício porque ele tinha uma distorção de autoimagem, mas hoje sabemos que não é só isso — afirma a endocrinologista.
O Globo