Apenas 1,7% dos médicos registrados no Brasil tem o título de intensivista. Isso representa cerca de 6.500 profissionais da categoria, segundo levantamento de 2018, o mais recente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). “Antes da Covid-19 já não tínhamos intensivistas suficientes. Com a doença, piorou”, diz Marcelo Moock, membro da Comissão de Ética e Defesa do Exercício Profissional da AMIB.
Para se ter uma ideia, é como se um município com 32 mil habitantes tivesse apenas um médico intensivista para socorrer todas as pessoas que precisam de atendimento em uma UTI.
“O ideal seria que o país tivesse cinco a seis vezes mais a quantidade de médicos intensivistas do que temos hoje para atender com plena capacidade em todos os leitos de UTI”, diz Moock. O especialista calcula que seriam necessários ao menos 40 mil novos médicos intensivistas.
Com quase todas as regiões do Brasil apresentando, segundo levantamento da CNN Brasil , taxas de ocupação de leitos de UTI acima de 80%, governos estaduais e municipais se mobilizam para adaptar leitos de enfermaria e erguer estruturas para hospitais de campanha.
Em um ano, segundo a AMIB, estima-se que tenham sido criados pelo menos 20 mil novos leitos de UTI em todo o país para atender a alta taxa de internações por coronavírus, elevando o total para cerca de 60 mil.
No entanto, o tempo necessário para formar profissionais qualificados para trabalhar nesses leitos não acompanha o mesmo ritmo. “Você equipa UTI, mas tem que esperar mais quatro anos para formar um médico especialista”, diz Moock.
Falta atendimento básico
Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), o país tem 422 mil médicos considerados aptos ao trabalho na emergência epidemiológica por terem menos de 60 anos. Eles representam 80% de todos os registros ativos de médicos no Brasil.
Os dados, de junho de 2020, coletados nos 27 Conselhos Regionais de Medicina, são os mais recentes disponibilizados e foram levantados pelo CFM com o apoio da Universidade de São Paulo.
Na prática, no entanto, nem todos podem trabalhar na linha de frente. Entre autoridades e especialistas é praticamente consenso que faltam profissionais de saúde para atuar nessa função, em vários níveis, desde a atenção básica até a emergência.
“O ensino da Medicina no Brasil é e sempre foi muito focado em especialidades. Os egressos das faculdades procuram um nicho e atuam apenas nele. Isso faz com que o atendimento de atenção primária, um dos que o país mais precisa, fique deficitário”, avaliou em entrevista à CNN Brasil Arthur Chioro, médico sanitarista e ex-ministro do governo Dilma Rousseff.
Segundo Chioro, os profissionais generalistas são essenciais para responder de forma preventiva e ajudar a filtrar e encaminhar a população com um direcionamento mais assertivo. Além deles, na opinião do ex-ministro, também estão em falta médicos aptos a atuar nas salas de emergência e terapia intensiva de Unidades de Pronto Atendimento e Pronto Socorro.
“Com esse tipo de profissionais, toda a linha de atendimento generalizado é melhorada, o que, no caso do coronavírus, por exemplo, teria ajudado a conter a disseminação da doença”, explicou o médico.
Mauro Junqueira tem a mesma opinião. O secretário-executivo nacional do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) alega haver falta de profissionais de alta e média complexidade na linha de frente.
“Precisamos formar cada vez mais pessoas nos moldes do SUS para dar respostas com mais qualidade. Há muito enfrentamos a falta de médicos, então na ponta o pessoal acaba tendo que se virar nos 30”, contou o secretário.
Distribuição desigual
A situação é agravada por outro fator: a concentração das forças de trabalho nos grandes polos e consequente regionalização da mão de obra da saúde.
“Nos estados do Norte, por exemplo, há lugares em que abrimos todos os anos o mesmo edital para contratação de médicos, e as vagas nunca são preenchidas. Isso também acontece nos territórios de quilombolas e em outras regiões mais distantes dos grandes centros”, analisou Junqueira.
No último levantamento do CFM, os dados corroboram as análises. Apenas os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais concentram 50,6% de todos os médicos brasileiros teoricamente aptos a trabalhar na pandemia (com idade abaixo de 60 anos), ou seja, 213.619 profissionais. No outro extremo da lista, Amapá, Roraima e Acre têm 0,8% do total, o equivalente a 4.348 médicos.
No que diz respeito a médicos intensivistas, o cenário também se repete. Segunda a AMIB, há mais escassez de especialistas nas regiões Norte e Nordeste, com a densidade de 1,5 e 2,0 médicos intensivistas para cada 10 mil habitantes, respectivamente. Por sua vez, o Distrito Federal tem 5,9 intensivistas por 10 mil habitantes, e São Paulo, 3,1.
Segundo o próprio Conselho, a ausência de políticas públicas implica na má distribuição dos profissionais por estados e regiões. Além disso, na maioria das vezes a iniciativa privada também leva a melhor em relação ao serviço público.
“A rede privada pode oferecer melhores condições para os médicos. Nas contratações emergenciais da pandemia, eles podem pagar muito mais, o que é um atrativo para os profissionais”, explicou Arthur Chioro.
De acordo com o levantamento Demografia Médica 2020, produzido pelo CFM e pela USP, 50,2% dos médicos aptos a trabalhar na pandemia atuam na iniciativa privada e no serviço público, 28,3% trabalham apenas na iniciativa privada, seja por meio dos planos de saúde, seja em consultórios particulares, e 21,5% atendem apenas no serviço público. Com isso, a força de trabalho na iniciativa privada é de 78,5% e, no serviço público, 71,7%.
CNN BRASIL