Como a discriminação agrava problemas de saúde em idosos LGBT+


Estigma e despreparo das equipes dificultam o acesso dessa população a exames e tratamentos, elevando riscos físicos e mentais e comprometendo a qualidade de vida

Por Arthur Almeida, da Agência Einstein

O preconceito ainda é uma barreira entre idosos LGBT+ e o sistema de saúde. A discriminação, somada ao despreparo dos serviços e ao medo de reações hostis, faz com que muitos evitem consultas, deixem de realizar exames preventivos e adiem tratamentos essenciais. O resultado é um envelhecimento marcado por maior incidência de doenças físicas e mentais, isolamento social e pior qualidade de vida.

“Não é comum ver idosos LGBT+ nos consultórios, e muitos fatores contribuem para essa situação: sobrevida menor em razão da violência, preconceito intenso e sistemas de saúde despreparados”, analisa a médica geriatra Maysa Seabra Cendoroglo, do Einstein Hospital Israelita. “Quando esses indivíduos conseguem envelhecer, o pouco acolhimento que recebem ao longo da juventude costuma levá-los a ter receio de buscar ajuda profissional.”

Essa também é a conclusão de diversos estudos científicos. Um trabalho desenvolvido com 6.693 brasileiros com mais de 50 anos e majoritariamente LGBT+ (65%) concluiu que, muitas vezes, essa comunidade sente receio sobre como será atendida nas unidades de saúde e, por isso, não as procura. Publicada em 2023 no periódico Clinics, a pesquisa foi desenvolvida pela Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE), a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de São Caetano do Sul (USCS).

Na prática, isso se traduz em uma menor realização de exames preventivos por indivíduos LGBT+s, quando comparados a pessoas cisgênero e heterossexuais. Segundo a pesquisa, apenas 40% das mulheres lésbicas relataram já ter feito mamografia, contra 74% das heterossexuais. O mesmo ocorre nos exames preventivos de colo do útero (39% ante 73%) e de câncer de cólon (50% e 57%, respectivamente).

Outro ponto destacado no estudo é que 34% dos LGBT+ preferiram não revelar sua identidade de gênero ou orientação sexual aos médicos que os atenderam. Entre os que escolheram falar sobre o assunto, 9% relataram ter enfrentado reações inapropriadas. Esse tipo de ocorrência evidencia alguns dos motivos que levaram cerca de 53% dos LGBT+ ouvidos a avaliarem que as equipes médicas não estão preparadas para lidar com suas particularidades.

“Já conversei com pessoas transgênero que relataram ter sido aconselhadas pelos médicos a descontinuar seu processo de terapia hormonal na velhice, o que pode soar bastante insensível”, relata o antropólogo Carlos Eduardo Henning, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). As aplicações regulares de hormônio garantem a manifestação de certas características físicas que ajudam a reafirmar a identidade de gênero, como ter voz mais fina ou barba.

Prejuízos à saúde

A exposição frequente — e muitas vezes precoce — a condições físicas e emocionais adversas pode fazer pessoas LGBT+ envelhecerem mais rapidamente em comparação a outros grupos. “Nascemos com uma reserva funcional que vai sendo consumida ao longo da vida para enfrentar situações de estresse, sem perder o equilíbrio fisiológico”, explica Maysa Cendoroglo. “Idosos com baixa reserva apresentam maior suscetibilidade a doenças e suas complicações graves.”

Como resultado do distanciamento dos serviços de saúde, pacientes LGBT+ apresentam maior prevalência de problemas mentais, cognitivos, físicos e sexuais, aponta um artigo publicado em 2024 no The International Journal of Aging and Human Development. Nesses indivíduos há maiores índices de depressão, ansiedade, ideação suicida, isolamento social, declínio cognitivo precoce e abuso de substâncias nocivas, que podem ser agravados por fatores de risco como diabetes e estresse crônico. Também enfrentam uma alta prevalência de doenças cardiovasculares, pulmonares e renais, além de casos de dor crônica.

“Há uma série de doenças que podem se relacionar com o histórico de violências, trajetórias precárias de cuidado e ausência de acesso e acompanhamento no sistema de saúde”, acrescenta o psicólogo Marco Aurélio Máximo Prado, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Além disso, há condições de vulnerabilidade vinculadas à saúde mental, ao isolamento social e a dificuldades em manter redes de cuidado no envelhecimento.”

Violência estrutural e institucional

A discussão sobre a velhice LGBT+ já era levantada por ativistas internacionais desde 1960, especialmente em países do Hemisfério Norte. No entanto, ela só começou a ganhar espaço na América Latina nos últimos anos. Segundo o professor da UFG, o ponto de virada no Brasil foi 2017, com o surgimento da ONG EternamenteSOU, que tem se dedicado a lançar programas de acolhimento psicossocial, médico e jurídico focados no bem-estar da população LGBT+ idosa e em trazer mais visibilidade ao tema – inclusive entre os próprios membros mais jovens da comunidade.

“Durante muito tempo, o envelhecimento não foi colocado como uma pauta principal do movimento LGBT+. Então, é muito interessante ver que as organizações das paradas do orgulho de diversas cidades [inclusive a de São Paulo, considerada a maior do mundo] tenham colocado o tema para discussão em 2025. A visibilidade do assunto é uma forma de politizar a velhice”, ressalta Carlos Henning.

O antropólogo explica que o envelhecimento é atravessado por questões de classe, orientação sexual, identidade de gênero, raça e até localização geográfica, e isso deve ser considerado na hora de pensar o acesso aos serviços de saúde por esse grupo. “O Brasil é uma sociedade profundamente etarista, mas, no caso de idosos LGBT+, eles não sofrem somente com esse tipo de violência.”

Muitas vezes, o etarismo é somado a outras formas de discriminação, como a LGBT+fobia, o sexismo, o racismo e a xenofobia. E esse acúmulo de violências pode ocorrer mesmo dentro da própria comunidade. Homens cisgênero gays e brancos com maior poder aquisitivo, por exemplo, costumam ter mais acesso a tratamentos e profissionais especializados do que travestis negras que vivem nas periferias.

É comum nesses grupos que as pessoas se amparem apenas na família, seja a “de sangue”, seja a “do coração”. “A família ‘de sangue’ é a família de origem, formada, por exemplo, por pai, mãe e irmãos, e que nem sempre representa uma rede de apoio à pessoa LGBT+. Há, inclusive, muitos casos de violência protagonizados justamente por esses familiares de origem”, explica o professor da UFG. “Por outro lado, a família ‘do coração’ aparece como uma rede de apoio constituída por amigos e companheiros que respeita e apoia a expressão da identidade sexual e de gênero daquele indivíduo.”

Contudo, mesmo quando a família de sangue realmente zela pelo bem-estar da pessoa idosa ou a família do coração assume a responsabilidade pelo seu cuidado, isso pode não ser suficiente para dar conta de todas as demandas de apoio e garantir a saúde na velhice. Daí a urgência da elaboração de medidas para combater essas violências estruturais e institucionais.

Acolhimento por meio de capacitação

O acesso à saúde pela população LGBT+ esbarra em entraves jurídicos. “Alguns direitos são basicamente calçados em reconhecimento jurídico, faltando políticas públicas consolidadas. Na área da saúde, elas se concentram na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST)”, analisa Prado, que também coordena o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+, da UFMG. “Sem mudanças na cultura política, nos valores e nas políticas institucionais, não veremos uma reversão do quadro de exclusão e, muito menos, ações de equidade no acesso à saúde.”

Um exemplo de mudança nesse sentido é o Projeto de Lei (PL) n° 2.670/2025, que foi apresentado no final de maio à Câmara dos Deputados, e aguarda designação de relator na Comissão de Saúde (CSAUDE). Ele prevê a criação da Política Nacional de Promoção dos Direitos e Atenção Integral às Pessoas Idosas LGBTI, para facilitar o processo de elaboração de medidas, garantir o acesso igualitário a serviços de saúde e combater o preconceito direcionado a idosos LGBT+.

Para Carlos Henning, seria interessante que instituições públicas e privadas investissem em guias e processos educacionais de formação profissional para indicar boas práticas, a fim de evitar desconfortos no atendimento de pacientes. “Questionamentos sobre os motivos de uma pessoa não ter filhos ou estar solteira, por exemplo, podem provocar sensações de culpa, desajuste e incômodo, afastando-as desses espaços”, afirma.

Esse cuidado nos ambientes de saúde deve começar já na recepção das mais variadas instituições voltadas à gestão do envelhecimento e da velhice, de modo que a pessoa se sinta bem-vinda e segura no local, e se manter em todas as etapas do atendimento médico. “Tratar sobre a sexualidade da pessoa idosa é um tabu, e as barreiras são ainda maiores em relação aos idosos LGBT+. Por isso, um esforço conjunto precisa ser feito para ensinar sobre esses assuntos nas escolas e cursos superiores de saúde, tanto para as novas gerações de profissionais quanto para a sociedade em geral”, avalia a geriatra do Einstein. “O preconceito não pode impedir que as pessoas tenham acesso aos cuidados de que necessitam.”

 

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