Enquanto a região Sudeste concentra quase metade (48,5%) de todos os atendimentos odontológicos dessa faixa etária, apenas 13,9% dos procedimentos foram no Nordeste
Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein
Um estudo inédito revelou que o acesso das crianças brasileiras a tratamentos odontológicos especializados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) varia muito de região para região. A pesquisa analisou mais de 29 milhões de atendimentos realizados por odontopediatras entre 2008 e 2022 e aponta uma desigualdade: o cuidado especializado em saúde bucal infantil ainda é desigual no Brasil.
O levantamento foi feito por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Odontopediatria da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), e considerou dados das cinco grandes regiões do país: Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Os resultados foram publicados na revista Pesquisa Brasileira em Odontopediatria e Clínica Integrada.
Segundo o cirurgião-dentista Ricardo Barbosa Lima, um dos autores do estudo, já se sabia que havia dificuldades no acesso a esse tipo de atendimento, mas ainda faltavam dados nacionais. “Investigamos toda a produção em odontopediatria no SUS e observamos disparidades regionais significativas. Não existia um levantamento com esse alcance.”
Os dados revelam que as crianças de zero a 14 anos do Nordeste são as que menos acessam os atendimentos especializados. Apenas 13,9% dos procedimentos realizados no período foram nessa região — o menor índice entre todas. Já o Sudeste concentrou quase metade (48,5%) de todos os atendimentos do país.
A situação no Norte também chama atenção: além de ter oscilado bastante ao longo dos anos, foi a única região onde houve queda no número de atendimentos odontopediátricos ao longo dos 15 anos analisados. Mesmo quando os anos mais críticos da pandemia (2020 a 2022) são desconsiderados, a oferta de cuidados especializados na região permanece estagnada, ao contrário do Sul, que apresentou crescimento.
Faltam profissionais nas unidades
Segundo Lima, um dos fatores que ajudam a explicar as diferenças regionais é que a odontopediatria não é uma especialidade obrigatória nos Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs), unidades do SUS que prestam atendimento mais complexo e complementar à rede de atenção primária. Isso significa que a presença desses profissionais depende da decisão dos gestores locais de saúde, o que pode favorecer regiões com maior infraestrutura ou recursos. “Como não é uma especialidade obrigatória nos CEOs, necessita de contrapartida. Isso faz com que regiões com menos recursos ou menor infraestrutura sejam desfavorecidas”, disse.
Além disso, segundo ele, as condições de trabalho dos profissionais também influenciam muito nos resultados: carga horária, estrutura das unidades, formas de encaminhamento de pacientes e até o tempo necessário para atendimento. “Se uma região tem crianças em situações mais graves, é natural que o atendimento seja mais demorado, o que reduz o número de procedimentos registrados, mas não significa menos necessidade”, completa.
Para o cirurgião-dentista Valmir Vanderlei Gomes Filho, especialista de Projetos do Cuidado Público, da Diretoria de Atenção Primária e Redes, do Hospital Israelita Albert Einstein, a desigualdade no acesso à odontopediatria é reflexo das desigualdades históricas e estruturais do sistema de saúde brasileiro.
“É uma combinação de fatores econômicos, geográficos e de gestão. Nas regiões Norte e Nordeste, a escassez de profissionais, a distância até os centros de atendimento e a baixa renda da população dificultam ainda mais o acesso ao cuidado odontológico especializado”, explicou. “Além disso, problemas como baixa escolaridade, pobreza e falta de informação sobre saúde bucal influenciam diretamente na procura por esses serviços”, afirmou.
O número de odontopediatras registrados no SUS oscilou ao longo do período estudado, o que também pode ter influenciado a variação no número de atendimentos. Em 2008, eram 1.343 profissionais atuando na rede pública. Em 2022, esse número aumentou para 1.595, tendo atingido o pico em 2010, com 1.745 profissionais. Mesmo assim, esse crescimento não foi suficiente para equilibrar o acesso entre as regiões.
Segundo Lima, o resultado encontrado para o Nordeste reforça dados já conhecidos sobre a maior vulnerabilidade social e de saúde dessa região. Pesquisas anteriores mostram que crianças nordestinas apresentam altos índices de cárie dentária – um dos principais problemas de saúde bucal – e têm menos acesso a serviços preventivos e de tratamento. Em pequenas cidades do interior, por exemplo, cerca de 69% das crianças tinham cáries não tratadas, segundo dados do da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil 2010).
Esses números indicam uma relação direta entre território, condição socioeconômica e acesso aos serviços públicos de saúde, incluindo os de odontologia. A desigualdade começa ainda na atenção básica, onde a cobertura e a capacidade de resolver problemas de saúde bucal variam amplamente entre regiões. Quando a rede básica falha, a tendência é que crianças sejam encaminhadas a serviços especializados – o que nem sempre ocorre, dada a ausência de estrutura ou profissionais qualificados, especialmente nas regiões mais pobres.
“A experiência com cárie é algo difícil de mensurar em um país como o Brasil, que possui dimensão continental e uma população que ultrapassa 200 milhões de habitantes. Mas alguns estados da região Nordeste e Centro-oeste apresentam maior prevalência em comparação aos demais. O componente socioeconômico vulnerável é fortemente associado à pior experiência com cárie”, disse o pesquisador.
Impactos da pandemia
A pandemia de Covid-19 também teve impacto direto sobre os atendimentos odontológicos, com forte queda nos procedimentos eletivos em 2020. As regiões Norte e Nordeste foram as mais afetadas, agravando ainda mais as desigualdades já existentes. “O contexto pandêmico restringiu consultas odontológicas eletivas e priorizou as emergenciais. Esse longo período em baixa produtividade foi, sem dúvidas, um dos principais problemas para a saúde bucal de toda a população, inclusive de crianças”, disse Lima.
Com isso, aumentou o acúmulo de casos não atendidos. “Tudo isso impactou muito os cuidados preventivos com as crianças. Ações importantes como a primeira consulta, o acompanhamento do crescimento e o controle de doenças bucais ficaram em segundo plano”, disse cirurgiã-dentista Aline Moreno Ferreira Campos, professora do curso de especialização Odontologia em Saúde Coletiva: Ênfase em Saúde da Família e Comunidade, do Ensino Einstein.
Somam-se a isso fatores como a escassez de profissionais, menor número de centros especializados, dificuldades de gestão e desigualdades socioeconômicas. “Como consequência, houve risco de piora nos indicadores de saúde bucal infantil e aprofundamento das desigualdades regionais no acesso aos cuidados odontológicos”, comentou Moreno.
Diante desse cenário, os pesquisadores defendem que a odontopediatria passe a ser uma especialidade obrigatória nos CEOs, como já acontece com outras áreas como endodontia e periodontia. Isso garantiria um atendimento mais equitativo e contínuo para as crianças em todo o país. “Ter um especialista fixo para cuidar das crianças é fundamental. Mesmo com uma atenção básica bem estruturada, alguns casos exigem conhecimento mais aprofundado, como cirurgias, tratamentos endodônticos ou reabilitações”, destacou Ricardo Lima.
A professora Aline Moreno concorda e destaca dois benefícios principais: “Aumentar o acesso ao atendimento para casos mais complexos e permitir um monitoramento mais preciso dos indicadores de saúde bucal infantil”, disse a especialista, que acredita que a mudança poderia ajudar a reduzir as desigualdades regionais, ao forçar uma estrutura mínima em todas as regiões e estimular a formação de mais especialistas onde há maior carência.
Em nota enviada à Agência Einstein, o Ministério da Saúde informou que em 2024 registrou investimento recorde em saúde bucal: R$ 4,8 bilhões. Acrescentou ainda que, em 2023, foi sancionada a lei que incluiu a Política Nacional de Saúde Bucal na Lei Orgânica da Saúde, tornando a saúde bucal um direito de todos os brasileiros pelo SUS.
O documento diz que, em março de 2025, a pasta incluiu um incentivo financeiro federal para apoiar a implantação e o custeio de especialidades ainda não ofertadas nos CEO do SUS, o que permite que gestores incluam atendimentos de odontopediatria em serviços já existentes. Atualmente, há 1.771 odontopediatras registrados no SUS, sendo 695 atuantes nos CEO.
O Ministério da Saúde informou, ainda, a criação do Serviço de Especialidades em Saúde Bucal (Sesb), voltado a municípios com até 30 mil habitantes, que oferece atendimento odontológico especializado, conforme as necessidades locais. Esta disponibilização reforça o compromisso de garantir atendimento odontológico integral em regiões desassistidas.