O filho de Patrícia morreu atropelado aos 23 anos de idade; ela não sabia se ele era doador, mas decidiu ajudar a salvar outras vidas.
Por Fernanda Bassette, da Agência Einstein
Há pouco mais de nove meses a advogada e empresária Patrícia Sibin Barbosa de Oliveira, de 48 anos, teve de enfrentar sozinha a decisão de doar ou não os órgãos do filho Fernando, que morreu atropelado aos 23 anos após sair de uma festa em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. Ela, que sempre falou abertamente com familiares e amigos sobre a intenção de ser doadora de órgãos, nunca havia conversado com o filho a respeito do tema.
“A gente precisa falar sobre doação de órgãos com nossos filhos. Jamais imaginei que passaria por isso e por isso eu não sabia qual era a vontade dele. Fiz a minha vontade, doei todos os órgãos possíveis e não me arrependo. Foi a coisa mais linda saber que pude salvar outras vidas”, disse Patrícia, ainda bastante emocionada, ao lembrar do acidente e de como foi a decisão de doar os órgãos do filho ao saber que ele havia entrado em morte cerebral.
A empresária decidiu levantar a bandeira em prol da importância da doação de órgãos e criou uma página no Instagram (@paty_doadora_multiplosorgaos) onde fala sobre o assunto sob a perspectiva de uma mãe que não sabia se o filho era doador para chamar a atenção para o tema.
Relatório anual da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) divulgado nesta segunda-feira (6) aponta que a taxa de recusa familiar para doação de órgãos aumentou para 47% e é a maior em dez anos. A taxa de efetivação da doação não chega a 30%. Em um depoimento para a Agência Einstein, Patrícia conta como foi que tudo aconteceu.
Leia abaixo:
Meu filho Fernando tinha 23 anos e estudava arquitetura e urbanismo em São Paulo. Eu morava com o meu atual marido e meu filho mais novo, Diego, em uma fazenda na área rural de Guará (SP). Com a pandemia, as aulas ficaram on-line e por medo do vírus Fernando voltou a morar em São João da Boa Vista, no interior, com a minha mãe. Era sexta-feira, dia 6 de maio, quando o Fe falou para a avó que ia na inauguração de uma balada que fica às margens da rodovia [SP 334, rodovia Dom Tomas Vaqueiro]. Guardou o carro, deu um beijo e disse que ia à festa de carona com um casal, que são amigos dele desde a infância. Saiu para nunca mais voltar.
Nessa noite estávamos trocando mensagens por whatsapp. O Fe estava me falando sobre o projeto dele de criar uma marca própria de sapatos [que receberia o nome de Greggo]. Ele já tinha protótipos e fazia uns desenhos lindos, estava até pensando em mudar a faculdade para design de produtos. Nossa última mensagem foi 00h16, depois que eu elogiei uma apresentação do projeto. As últimas palavras dele para mim foram: ‘obrigado mãe, é ótimo ouvir isso’. Eu adormeci.
Quando foi por volta das 3h da madrugada, o casal de amigos quis ir embora da festa, mas Fernando preferiu ficar curtindo mais um pouco. Disse que voltaria para casa com outros amigos, que não sei quem são. O que me disseram é que ele teria bebido e acabou passando mal, mas ele não recebeu nenhum suporte – nem desses outros amigos, nem de nenhum funcionário da balada.
Meu filho saiu da festa sozinho, por volta das 5h da manhã, caminhou cerca de 500 metros. Atravessou a rodovia até o gramado central onde o sinal de celular e de internet seria melhor. Eu não sei como ele voltaria para casa, mas eu imagino que ele estava caminhando para encontrar sinal e ligar para algum motorista de aplicativo. Havia uma forte neblina no local e Fernando foi atropelado por uma caminhonete que vinha em sentido contrário, na pista de ultrapassagem. O impacto da batida foi tão forte que meu filho foi arremessado e caiu naquela vala do canteiro central da rodovia.
Às 7h30 do sábado o meu filho mais velho, Guilherme, me ligou. Ele nunca ligava esse horário e sem saber ainda do ocorrido, pulei da cama. De cara, perguntei o que havia acontecido com o Fernando. Mãe já sabe né? Mãe sente. Meu filho disse que o Fernando havia sido atropelado, mas não tinha ideia da gravidade. Pegamos a estrada imediatamente, eu morava a 300 km de distância.
O Fe foi socorrido pelo Samu, estabilizado e levado a um hospital público da cidade. Ele teve um traumatismo craniano gravíssimo que resultou em uma lesão axonal difusa [um tipo de lesão cerebral que causa perda da consciência e pode deixar o paciente em estado vegetativo]. Em muitos casos a morte ocorre ainda no local. Devido à gravidade, ele não poderia ser transferido, então permanecemos em São João mais alguns dias até a situação dele ser mais favorável para a transferência.
Todo mundo sabia que o caso era gravíssimo, mas eu não conseguia informações, não tinha acesso aos laudos, não podia ficar ao lado dele o tempo que ainda restaria. Eu o levaria para onde quer que fosse, desde que pudesse ficar com ele. Antes mesmo de ser aberto o protocolo de morte encefálica, um neurocirurgião me abordou perguntando se eu tinha intenção de doar os órgãos do meu filho. Não houve nenhum cuidado, nenhuma delicadeza, meu filho era mais um número. Acho que essa pré-abordagem foi muito dura comigo, faltou treinamento, faltou humanidade.
Na quarta-feira, dia 11, decidi transferir meu filho para Poços de Caldas, e assumi os riscos da transferência. São 40 km de distância, mas deu tudo certo. Lá, o Fernando foi muito bem recebido e eu pude ficar ao lado dele na UTI o dia inteiro. Os dias foram passando, os poucos reflexos que ele mantinha foram diminuindo. Ele sempre esteve no nível rebaixado da escala Glasgow [escala neurológica usada internacionalmente para registrar o nível de consciência de uma pessoa]. Fizeram vários exames ao longo da internação, até que um deles apontou a falta de fluxo sanguíneo no cérebro. Não havia mais o que fazer, ali acabou tudo.
Nesse momento, pedi para ver o meu filho na UTI mais uma vez. O pai dele estava presente e quis entrar também. Entramos juntos e ficamos cada um de um lado da cama, chorando e conversando com o Fe, numa tentativa de nos despedir. Percebemos que ele foi se desligando do corpo, ele não estava mais ali. Foi nítido. Fernando morreu na noite do dia 25 de maio, na presença dos pais, após se despedir.
Dessa vez, a nova equipe me abordou para saber sobre a doação de órgãos com todo cuidado e acolhimento. Eu não sabia qual era a vontade do Fernando, mas ele era um menino muito saudável, tanto que ficou em coma cerca de 20 dias após o acidente. Tinha apenas uma cicatriz na testa. Por que não doar? Os órgãos dele poderiam salvar outras vidas, e salvaram!
Concordei com a doação. O processo é rigoroso. Foi feita uma entrevista rigorosa e a partir daí foi acionada a central estadual de transplantes para encontrarem receptores compatíveis na lista de espera e equipes para a captação. Era preciso fazer tudo muito rápido, porque o tempo é uma coisa que não se tem nessa hora. Cada minuto é precioso. Toda a logística demorou dois dias.
No dia que as equipes chegaram para fazer a captação dos órgãos eu estava lá. Fui abraçar o meu filho pela última vez e queria acompanhar de perto todo o processo. Quando souberam que eu era a mãe do doador, os profissionais vieram me abraçar e me agradecer. Naquela hora chorei muito, pareciam anjos que estavam ali me consolando. Os cirurgiões e enfermeiros foram muito delicados e trataram o meu filho como uma alma ali e não como um corpo.
Por volta das 13h30, a primeira equipe passou com o coração do Fe. Todo mundo aplaudiu. A mesma coisa quando passaram os outros órgãos. Naquele momento, o céu desceu no hospital ou nós subimos ao céu, não tenho explicação. Foi muito bonito e emocionante. Fernando pôde doar o coração, o fígado, os rins e as córneas. Não pôde doar os pulmões porque pegou uma infecção hospitalar. Havia duas equipes aéreas, com aviões da Polícia Militar, e uma em solo. O que eu sei é que o coração do Fe foi para Belo Horizonte e o fígado foi para Passos. Ouvi dizer que as córneas foram para Pouso Alegre, mas não tenho certeza.
Não sei quem recebeu os órgãos do meu filho, gostaria muito de um dia poder conhecê-los e dar um abraço muito forte. Para mim o Fernando não morreu, ele vive em pelo menos seis pessoas. Na lápide dele tem uma frase escrita “O Fe vive” com a data de nascimento, jamais da morte.
Já pensou alguém que não enxergava receber as córneas do seu filho e voltar a ver? Ou alguém que dependia de hemodiálise, voltar a ter uma vida normal? Receber um coração que vai bater normalmente? Se eu puder deixar uma mensagem é que todos deveriam declarar-se doadores de órgãos e tecidos, avisando a família para respeitarem essa vontade numa eventualidade futura. Toda mãe que perder um filho deveria doar seus órgãos. É o ato de amor mais lindo que presenciei depois do nascimento. Doe órgãos. Salve vidas.