Endometriose: negligenciada, doença aumenta os riscos de infarto, AVC e câncer


Especialistas alertam que não é normal sentir cólicas todos os meses; doença afeta, pelo menos, entre 10 e 15% das mulheres em idade fértil

Você sente cólica todo mês? Então, a primeira coisa a ser dita é que, ao contrário do que afirma sua tia, seu marido, sua sogra e até seu médico, isso não é normal. E pode, como acontece com pelo menos entre 10% e 15% das mulheres em idade fértil (os especialistas acham que é bem mais), ser endometriose.

E essa doença não significa apenas que você vai ter um pouco (ou muita) cólica e talvez dificuldades para engravidar. O que a ciência vem mostrando é que a endometriose deixa o corpo num estado inflamatório — como acontece com a obesidade, o cigarro e outros agentes mais famosos — que aumenta as chances das mulheres terem vários outros problemas de saúde, entre eles infarto e câncer.

— A inflamação está presente em uma boa parte das situações que põem a vida em risco. Cerca de 80%, 70% das causas de morte estão relacionadas a alguma inflamação. Todo processo inflamatório desgasta, lesa a célula. E a endometriose é uma inflamação. Aí você vê maior risco de doença coronariana, de infartos, de AVC nessas pacientes. São estudos realizados nas maiores instituições científicas do mundo — alerta Ricardo Pereira, ginecologista do Centro Endometriose Santa Joana, em São Paulo, e um dos maiores especialistas do país em cirurgias de endometriose.

No ano passado, um estudo realizado por pesquisadores dinamarqueses e publicado pela Sociedade Europeia de Cardiologia mostrou que as mulheres com endometriose têm risco cerca de 20% maior de AVC e 35% maior de infarto em comparação com aquelas do grupo controle.

Um outro estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, publicado no JAMA, mostrou que mulheres com endometriose apresentavam risco quatro vezes maior de desenvolver câncer nos ovários.

Apesar das sérias repercussões para a saúde de milhões de mulheres em todo o planeta, a doença segue envolta em perguntas sem resposta.

— A endometriose é conhecida como a doença enigmática, cuja etiologia é desconhecida, a história natural não está bem definida, os mecanismos que desenvolvem dor também não estão bem esclarecidos, o diagnóstico é difícil, e o tratamento, na maioria das vezes, é insuficiente — afirma Pereira.

No entanto, para ele, o maior obstáculo está na própria sociedade:

— A endometriose é um problema cultural, antes de ser médico. No mundo todo a mulher é criada ouvindo que é normal sentir dor. Somos tolerantes com a dor da mulher. É um machismo que existe na sociedade. Ninguém trata a dor do homem com desprezo. Mas com a mulher é normal. Na medicina, na sociedade, em casa, na escola. Ou taxam ela de preguiçosa, sendo que está com uma fadiga provocada por um estado inflamatório. A endometriose é a doença mais negligenciada na história da Humanidade — diz.

Cura?

Hipócrates não sabia a causa, mas reconhecia o problema. O que ele também não sabia é que a vida das mulheres se transformaria de tal forma que em 2025 essa indicação não seria cabível. Então, o que a ciência tem feito pelas pacientes?

Existem várias teorias para a causa da doença, algumas vêm ganhando força, enquanto outras perdem. A ideia da menstruação retrógrada, ou seja, de que parte do fluxo menstrual acabaria ficando na cavidade abdominal, foi aceita por muitos anos, mas tem sido questionada. Outra defende que, ainda na formação dos órgãos, as células do endométrio se desenvolveriam no lugar errado, fora do útero. Mais especialistas vêm considerando que a origem da doença é genética — ideia reforçada pela presença de vários casos na mesma família, após endometriose ter sido encontrada em fetos e a manifestação da doença antes da menarca (primeira menstruação).

Sem saber exatamente a origem do problema, é difícil encontrar uma solução. Assim, a endometriose segue sem nenhum remédio.

Mesmo o tratamento hormonal, que é o primeiro passo, bloqueia os sintomas, mas não significa que a doença pare de se desenvolver.

No entanto, embora isso ainda não esteja documentado na literatura médica, o que a prática vem mostrando para muitos é que a endometriose pode ser curada pela cirurgia. Mas, para isso, todas as lesões precisam ser retiradas. E a chave aí e a palavra “todas”.

Nos estudos científicos é descrita a recidiva da doença. Mas, muitas vezes, ela não voltou, apenas persistiu.

— Se a paciente fez a cirurgia e aí no primeiro exame de controle, três meses depois, eu identifico as lesões nos mesmos lugares, mesmo que elas estejam menores, isso indica não uma recorrência, mas sim uma persistência de lesões que foram parcialmente removidas — explica Leandro Accardo, radiologista do laboratório Alta e do Hospital Israelita Albert Einstein.

Retirar completamente a endometriose é algo complicadíssimo. Primeiro porque, muitas vezes, o cirurgião tem que ser conservador a fim de preservar a capacidade reprodutiva da mulher. Além disso, as lesões podem estar presentes em áreas muito distintas exigindo uma equipe multidisciplinar, contando, por exemplo, com um cirurgião especialista na parte do aparelho digestório (reto, ílio e apêndice). Um aspecto fundamental é a qualidade dos exames feitos antes da cirurgia que, como um mapa do tesouro, vão indicar com mais precisão onde estão os focos a serem retirados.

— É importante o mapeamento pré-operatório da endometriose, que pode ser feito tanto pelo ultrassom quanto pela ressonância magnética, para que o cirurgião vá para a cirurgia sabendo exatamente quais são os pontos de comprometimento, e se há necessidade de ir com outros cirurgiões — conta Accardo.

Avanços

Há boas notícias. Segundo o radiologista, tem havido um aumento no diagnóstico de endometriose porque as mulheres têm ficado mais atentas e o sistema de saúde está mais consciente da doença. O progresso nos métodos de ultrassom e de ressonância magnética também é expressivo.

O clínico e endocrinologista Fabiano Serfaty reforça o caráter sistêmico da doença, afetando o organismo da mulher como um todo.

— O monitoramento global da saúde é essencial para a prevenção das doenças cardiovasculares e câncer, reforçando a necessidade de vigilância médica regular e de estratégias de rastreamento personalizadas. O acompanhamento médico deve incluir avaliação cardiovascular regular, controle da inflamação e estratégias de rastreamento oncológico adequadas. Além disso, um estilo de vida saudável pode reduzir significativamente as chances de complicações— afirma Serfaty. — A endometriose vai muito além da dor pélvica. Com o cuidado certo, é possível minimizar seus impactos e garantir mais qualidade de vida.

JORNAL O GLOBO

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