Karina Toledo | Agência FAPESP – Após analisar resultados de exames laboratoriais de quase 179 mil pessoas testadas para COVID-19 no Brasil – 33,2 mil delas com diagnóstico confirmado – um grupo de pesquisadores identificou diferentes perfis clínicos da doença que são influenciados pelo sexo e pela idade do paciente, bem como pela gravidade do quadro.
Os resultados do estudo, apoiado pela FAPESP, foram descritos em artigo disponível na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares. Segundo os autores, os achados podem servir de referência para os profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à pandemia.
“O vírus SARS-CoV-2 pode desencadear um amplo espectro de manifestações clínicas, variando de doença assintomática ou leve a doença grave e morte. Os parâmetros laboratoriais também variam muito de acordo com a idade e o sexo do paciente e, muitas vezes, os médicos têm dificuldade para interpretar os resultados dos exames e identificar uma alteração significativa. Esperamos que este trabalho possa ajudar nesse processo de avaliação”, diz à Agência FAPESP Helder Nakaya, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP).
Por métodos de bioinformática, o grupo coordenado por Nakaya analisou mais de 200 parâmetros laboratoriais dos milhares de pacientes da amostra, entre eles contagem completa de células sanguíneas e dosagem de eletrólitos, metabólitos, gases no sangue arterial, enzimas hepáticas, hormônios e biomarcadores de inflamação. Tais exames fazem parte da rotina de investigação clínica de pacientes com suspeita de COVID-19 e outras doenças infecciosas.
Os dados usados na pesquisa foram obtidos no COVID-19 Data Sharing/BR, um repositório de acesso aberto criado pela FAPESP e pela USP para abrigar, inicialmente, informações de pacientes que fizeram teste para COVID-19 nos laboratórios do Grupo Fleury, em todo o país, ou nos hospitais Israelita Albert Einstein e Sírio-Libanês, ambos na cidade de São Paulo (leia mais em agencia.fapesp.br/33526/ e em agencia.fapesp.br/33427/).
“Trata-se da maior coorte de pacientes com COVID-19 cujos dados laboratoriais foram sistematicamente analisados até o momento. Trabalhos anteriores já haviam investigado a relação da doença com muitos desses parâmetros – principalmente as citocinas [moléculas que desencadeiam o processo inflamatório] e a proteína C-reativa [principal biomarcador de inflamação sistêmica]. Mas, até então, havia apenas artigos que relatavam o estudo de alguns poucos parâmetros em muitos indivíduos ou de muitos parâmetros em poucos indivíduos”, comenta Nakaya.
De acordo com o pesquisador, o primeiro passo foi separar os diferentes grupos de pacientes a serem analisados considerando, principalmente, a idade, o sexo e o resultado do teste diagnóstico. Em seguida, foi necessário filtrar as informações em comum nos diversos centros médicos que alimentam o repositório – eliminando redundâncias e harmonizando dados discrepantes (nomenclaturas diferentes para um mesmo exame, por exemplo). Após o processamento das informações em um só banco de dados harmonizados, uma série de análises foi feita para traçar o perfil laboratorial da COVID-19 nos diferentes grupos de pacientes e compará-lo com os controles (indivíduos submetidos aos mesmos exames, mas sem diagnóstico confirmado).
Para a maioria dos indivíduos da amostra, as informações sobre o desfecho do caso não estavam disponíveis, ou seja, não era possível saber se o paciente precisou ser internado, se morreu ou se teve somente sintomas leves e se recuperou. Porém, parte dos dados fornecidos pelo Hospital Sírio-Libanês foi identificada como sendo de pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Isso tornou possível investigar o perfil laboratorial dos doentes que necessitaram de cuidados intensivos, como ventilação mecânica, e compará-lo com o de pacientes não internados.
Problema complexo
Inicialmente considerada uma infecção de vias respiratórias, a COVID-19 tem se revelado uma doença sistêmica, que pode estar associada a distúrbios gastrointestinais, hepáticos, cardiovasculares e neurológicos, podendo evoluir para síndrome do desconforto respiratório agudo, falência de múltiplos órgãos e morte.
“Tais manifestações extrapulmonares estão associadas a alterações nos níveis circulantes de diversos parâmetros bioquímicos, como bilirrubina, ureia, creatinina, mioglobina e fatores de coagulação. E ainda pouco se sabe sobre a influência do sexo e da idade do paciente no padrão desses parâmetros”, explica o médico Bruno Andrade, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Salvador, na Bahia, e coautor do artigo.
Segundo Andrade, estudos observacionais – baseados na análise de internações e óbitos – indicam que indivíduos idosos e do sexo masculino são os que apresentam maior risco de evoluir para quadros graves. “Contudo, essa associação ainda carece de confirmação biológica e o mecanismo fisiopatológico ainda não foi totalmente esclarecido”, diz.
Nas análises descritas no artigo, a infecção pelo SARS-CoV-2 em indivíduos de 13 a 60 anos se mostrou associada a alteração em diversos parâmetros laboratoriais de maneira muito mais frequente em homens do que em mulheres. Em pessoas com mais de 60 anos, as alterações laboratoriais parecem ter afetado igualmente homens e mulheres.
Indicadores usados pelos médicos para avaliar a presença de inflamação sistêmica, como a proteína C-reativa (PCR) e a ferritina, mostraram um padrão de alteração importante na presença de COVID-19, especialmente em homens idosos (acima dos 60 anos). Esses resultados sugerem que o alto índice de complicações e mortalidade documentado nessa subpopulação de pacientes em outros estudos pode ter associação direta com a inflamação sistêmica desregulada.
Alteração em testes de função hepática (AST, ALT, gama-GT) foi comumente observada em vários grupos etários, exceto em mulheres jovens. Na avaliação dos autores, esses resultados indicam que disfunção hepática é um fenômeno corriqueiro no contexto da COVID-19.
“Essa observação é importante, pois o fígado é um órgão central e coordena a produção de uma série de proteínas e outras moléculas que regulam processos como inflamação e coagulação. Alterações hepáticas podem ser um fator determinante para o descontrole de inflamação sistêmica associada a desfechos clínicos mais desfavoráveis”, explica Andrade.
Ao avaliar a contagem dos diversos tipos de leucócitos no sangue, os pesquisadores observaram que concentrações baixas de basófilos e de eosinófilos (células importantes para a imunidade antiviral) foram mais frequentes em idosos com COVID-19, independentemente do sexo. Os homens com diagnóstico confirmado da doença apresentaram as maiores concentrações de neutrófilos – que tendiam a aumentar ainda mais com a idade. De acordo com Andrade, valores altos na contagem de neutrófilos são um indicativo de inflamação sistêmica aguda.
Por fim, nos pacientes internados em UTI, o grupo notou alterações importantes em exames que avaliam o sistema de coagulação sanguínea (como d-dímero), contagem mais elevada de neutrófilos e maiores concentrações de marcadores de inflamação sistêmica (como a proteína C-reativa) e de dano celular e tecidual (como o lactato desidrogenase).
“Esses resultados sugerem uma clara associação entre a gravidade da doença e a ativação descontrolada de processos inflamatórios que possivelmente desencadeiam coagulação. O gatilho inflamatório da atividade de coagulação é uma hipótese relevante, pois implica que o controle terapêutico pode ser otimizado por meio de terapia anti-inflamatória. Porém, ainda são necessários estudos futuros desenhados para testar diretamente essa ideia”, afirma o médico.
Ciência aberta
A pesquisa coordenada por Nakaya contou com a participação de pesquisadores da USP, da Fiocruz e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e recebeu financiamento da FAPESP por meio de diversos projetos (2018/14933-2, 2018/21934-5, 2017/27131-9, 2013/08216-2, 2019/27139-5 e 2019/13880-5).
“Trata-se do primeiro artigo que analisa dados do COVID-19 Data Sharing/BR. Submetemos para publicação cerca de um mês após o repositório entrar em funcionamento, mostrando ser possível usar rapidamente um grande volume de dados compartilhados por vários centros”, afirma Nakaya.
O banco público disponibiliza três categorias de informação: dados demográficos (gênero, ano de nascimento e região de residência), resultados de exames clínicos e/ou laboratoriais e, quando disponíveis, informações sobre a movimentação do paciente (internação, por exemplo) e desfecho do caso (recuperação ou óbito).
De acordo com Fátima Nunes, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) e diretora do Centro de Tecnologia de Informação de São Paulo, quase 5 mil visitas e mais de 2 mil downloads já foram registrados nos três conjuntos de dados do repositório desde o lançamento, em 1o de julho. Em uma segunda etapa, o COVID-19 Data Sharing/BR abrigará também dados de imagens, como radiografias e tomografias.
“É um repositório poderoso, de grande valia para pesquisas sobre a doença. Desconheço iniciativa similar no Brasil”, comenta Andrade.
O artigo In-depth Analysis of Laboratory Parameters Reveals the Interplay Between Sex, Age and Systemic Inflammation in Individuals with COVID-19 pode ser lido em www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.08.07.20170043v2#disqus_thread.