Preconceito e baixa regularidade em serviços de saúde dificultam cuidados preventivos e rotina de assistência médica
Cotidianamente, o acesso à saúde configura-se um desafio ao bem estar da população brasileira, sobretudo da parcela LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e outro/as). Segundo pesquisa, múltiplos fatores estão associados a este cenário, como receio de episódios de preconceito, desatenção de profissionais de saúde à sexualidade do/a paciente, entre outros. Diante disso, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) elencou os principais pontos de atenção à saúde ginecológica de mulheres lésbicas e bissexuais cisgênero e de homens transgênero.
Atenção à saúde
Segundo pesquisa da Febrasgo, 76% das mulheres (independente de sua sexualidade) realizam consultas ginecológicas anualmente. Ao considerar somente as mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM), esse percentual cai para 47%, de acordo com o relatório Atenção Integral à Saúde das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, do Ministério da Saúde (MS).
A ginecologista Dra. Marair Sartori, membro da Comissão Nacional Especializada Uroginecologia e Cirurgia Vaginal da Febrasgo, aponta que “a rotina ginecológica das MSM não deve ser diferente da preconizada para mulheres heterossexuais. Exames preventivos, como mamografia e citologia cervicovaginal (principal método de detecção e prevenção do câncer do colo do útero) devem ser realizados de acordo com as diretrizes de saúde. O grande impacto na saúde ginecológica advém da falta de diálogo entre o profissional de saúde e a mulher. Apenas metade das mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM) informa esse fato para o profissional, em geral por inibição ou desconforto com o profissional”. A médica ainda chama a atenção para o dado da pesquisa do Ministério da Saúde que revela que os profissionais de saúde, de modo geral, não dão a devida atenção ou reagem negativamente quando informados sobre a sexualidade da paciente.
O presidente da entidade, Dr. Agnaldo Lopes, comenta que “ainda que fruamos de grande reconhecimento por parte de nossas pacientes, há um importante caminho em construção. O ginecologista é a porta de entrada da mulher no serviço de saúde. E precisamos olhar atentamente para os espaços de acolhida, no âmbito de suas sexualidades, de visibilizá-las nos sistemas de saúde. Somente deste modo, exerceremos uma medicina que atenda suas necessidades”.
Rotina de cuidados e exames
A médica defende que o profissional de ginecologia deve atentar às práticas sexuais e/ou exercício de sexualidades adotadas por suas pacientes, independente de serem heterossexuais, homossexuais, bissexuais ou assexuais. Os exames ginecológicos devem ser discutidos com a paciente, escolhendo juntos o melhor método. Mulheres que já iniciaram atividade sexual devem ser examinadas, com coleta periódica de exame citológico cervicovaginal. Segundo a pesquisa do Ministério da Saúde, 56,7% das mulheres que fazem sexo com mulheres iniciaram sua vida sexual entre 13 e 17 anos. O debut sexual homoafetivo ocorreu com 18 ou mais anos para 67,6% delas.
A Dra. Marair explica que muitos cuidados ginecológicos podem ser ajustados de acordo com as práticas sexuais das pacientes – como presença ou ausência de penetração. “O uso de cotonetes para coleta do exame Papanicolaou não é adequado, já que não permite a visualizar o colo do útero e a paciente deve ser informada sobre isso. Espéculos menores, uso de lubrificantes e delicadeza em seu uso são importantes para que o exame seja confortável e permita adequada análise da vagina e do colo do útero. O toque vaginal deve ser feito cuidadosamente, com apenas um dedo caso a paciente fique mais confortável. Obviamente, esses cuidados devem ser sempre adotados com todas as mulheres”.
Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)
As ISTs podem surgir pela ação de vírus, bactérias ou protozoários – caso da sífilis, gonorreia, HIV, HPV, hepatites, herpes, tricomonas. A falsa crença de que mulheres lésbicas e bissexuais e homens trans estão menos propensas às infecções sexualmente transmissíveis prejudica a prevenção de saúde dessas pessoas. O contágio pode ocorrer por contato entre mucosa oral ou vaginal. O uso de acessórios compartilhados também é responsável pela transmissão de agentes infecciosos.
“A orientação heteronormativa do profissional de saúde pode ser um grande obstáculo para a adequada assistência de saúde, ao ignorar práticas sexuais e falhar na orientação quanto à prevenção de ISTs. A transmissão entre o casal pode ocorrer por penetração vaginal, sexo oral, contato com sangue ou uso de acessórios sexuais. Portanto, independente do sexo do parceiro, os riscos de ISTs são reais”.
A especialista completa ainda que o uso compartilhado de acessórios sem higienização adequada, o sexo oral ou a prática sexual vagina com vagina podem também alterar a flora vaginal, causando vaginose bacteriana. “Não se trata de uma IST, porém, pode facilitar a entrada de outros agentes causadores de ISTs”.
Segundo a o relatório Atenção Integral à Saúde das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, do Ministério da Saúde, 38,6% das MSM relataram já ter contraído alguma infecção sexualmente transmissível. As mais referidas foram Candida albicans (44,6%); HPV (25,0%); Herpes genital (21,4%); Trichomonas vaginalis (17,8%); Vaginose bacteriana (8,9%); HIV (7,1%).
Rotina sexual
A médica aponta que mulheres que fazem sexo com mulheres e homens transexuais mais raramente utilizam preservativos ou barreiras de proteção ao fazer sexo. “Há necessidade de orientá-las quanto aos riscos de contaminação e métodos de prevenção. Higienização de acessórios com água e sabão e uso de preservativos nos acessórios auxilia na prevenção de transmissão de agentes infecciosos Plástico filme, camisinhas cortadas e abertas, luvas, dental dam, camisinhas femininas, calcinhas de látex, são métodos de barreira no sexo oral. No entanto, podem não ser exatamente confortáveis”.
A especialista também relata que nenhum método de prevenção é altamente eficaz para proteção no sexo sem penetração. Deste modo, recomenda que mulheres que fazem sexo com mulheres façam exames ginecológicos rotineiros e peçam que suas parceiras também o façam. “Isso diminui a transmissão de doenças”. A mesma orientação vale para homens trans.
Saúde do Homem Transgênero
A ginecologista Dra. Laura Olinda Costa, membro da Comissão Nacional Especializada em Ginecologia Endócrina da Febrasgo, aponta que a assistência ao homem transgênero deve ser abrangente e individualizada, assim como ocorre com as mulheres cisgênero. Ela comenta, contudo, que aqueles que realizam tratamentos hormonais demandam atenções específicas.
Segundo ela, o acompanhamento de um homem transgênero é feito por uma equipe multidisciplinar formada por ginecologistas, endocrinologistas, psicológicos, assistentes sociais e outros especialistas. Realiza-se minuciosa investigação de condições de saúde e identificação de possíveis problemas de base que careçam de cuidados anteriores ao tratamento hormonal.
A médica explica que no primeiro ano, após principiar o uso de androgênios, a rotina de consultas deve ser trimestral. “As dosagens de testosterona ministradas são elevadas. Observamos a evolução o paciente, possíveis alterações no perfil lipídico, alteração glicêmica, coagulação sanguínea, função renal, impactos no fígado e outros indicadores. Pode ainda ocorrer alguma alteração de humor e ansiedade que pode ser acompanhada com o apoio de profissionais de saúde mental”. Após, esse período, as consultas para avaliações clínicas tendem a ser semestrais e, por fim, anuais.
A Dra. Laura destaca ainda a importância de manter os cuidados preventivos ao câncer de mamas. De acordo com ela, a ação dos andrógenos pode promover uma atrofia das mamas, o que diminuiria o estímulo ao surgimento da doença. Entretanto, em alguns casos, o hormônio masculino pode ser convertido perifericamente em estrógeno, mantendo as condições para o aparecimento da doença.
Outro ponto de atenção diz respeito à fertilidade desses homens. O uso dos androgênios, a longo prazo, pode comprometer a fertilidade. Dessa forma, aqueles que anseiam gestar precisam ponderar os impactos de seu tratamento na capacidade reprodutiva. NO momento em que desejarem engravidar, é necessário suspender os hormônios masculinos com muita antecedência e aferir se as condições para fecundação se restabelecem. Por outro lado, ainda que pequena a possibilidade de gravidezes não planejadas durante a hormonioterapia podem ocorrer. Por esta razão, demanda a adoção de cuidados contraceptivos.