Proteínas na placenta poderiam favorecer infecção por Sars-CoV-2


Karina Toledo | Agência FAPESP – Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu identificaram dois genes altamente expressos na placenta humana que codificam proteínas que poderiam servir como uma espécie de “porta alternativa” para a entrada do novo coronavírus (SARS-CoV-2) nas células: a dipeptidil peptidase 4 (DPP4) e a catepsina L (CTSL).

Detalhes da pesquisa, apoiada pela FAPESP, foram descritos em artigo disponível na plataforma bioRxiv (sem revisão por pares).

Proteínas na placenta podem servir como porta de entrada para novo coronavírus durante a gravidez (Foto: Norman Barker/Johns Hopkins School of Medicine)

  • Como explicam os autores no texto, as células da placenta expressam, durante toda a gestação, quantidades muito pequenas das duas principais moléculas usadas pelo SARS-CoV-2 para infectar células humanas: a enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) e a serino-protease transmembranar 2 (TMPRSS2). No entanto, a presença do vírus nesse órgão já foi confirmada, em estudos de outros grupos, tanto por microscopia eletrônica quanto por RT-PCR (reação em cadeia da polimerase após transcrição reversa), exame capaz de identificar o RNA viral usado para diagnosticar a COVID-19. Além disso, o vírus já foi detectado no organismo de recém-nascidos. Ainda não se sabe se a transmissão ocorreu dentro do útero ou durante o parto.

“Partindo dessas evidências, decidimos investigar se haveria um mecanismo alternativo capaz de permitir a infecção das células placentárias, ainda que de forma menos eficiente do que o mediado pela proteína ACE2. A presença do SARS-CoV-2 na placenta poderia levar à transmissão intrauterina do novo coronavírus, condição associada a prejuízos no desenvolvimento fetal”, diz à Agência FAPESP Luis Antonio Justulin, professor do Instituto de Biociências de Botucatu (IBB-Unesp).

No Departamento de Biologia Estrutural e Funcional do IBB-Unesp, o pesquisador coordena um projeto dedicado a investigar como diferentes condições vivenciadas no útero materno e ao longo da primeira infância podem impactar a saúde da prole ao longo da vida, de acordo com o conceito da Origem Desenvolvimentista de Saúde e Doença (DOHaD). Em um experimento feito com ratos, por exemplo, o grupo mostrou que filhos de mães alimentadas com dieta pobre em proteínas durante o período de gestação e lactação correm risco consideravelmente maior de desenvolver câncer de próstata ao envelhecer (leia mais em agencia.fapesp.br/28356).

No caso do SARS-CoV-2, ainda não há relatos de bebês nascidos com sequelas decorrentes da infecção materna. Contudo, estudos já mostraram que o vírus pode causar alterações vasculares na placenta que, em teoria, poderiam prejudicar o aporte de oxigênio e nutrientes para o feto.

Para entender melhor como o novo coronavírus interage com as células da placenta, o grupo liderado por Justulin decidiu analisar dados de expressão gênica de diferentes tipos de células placentárias em diferentes momentos da gestação. Foram usados na pesquisa dados obtidos em estudos anteriores e depositados em repositórios públicos, como o Gene Expression Omnibus (GEO). O grupo então cruzou esse achado relacionado à placenta com o conteúdo de outro banco de dados denominado P-HIPSTer (sigla em inglês para predição de interações moleculares patógeno-hospedeiro por similaridade de estrutura), cujo algoritmo explora informações baseadas em sequências e estruturas moleculares para inferir a probabilidade de interações entre vírus e proteínas humanas. Esse Human-virus interactome atlas mapeia possíveis redes de interação entre proteínas humanas e proteínas de diversos vírus, possibilitando a identificação de potenciais alvos terapêuticos.

A estratégia permitiu aos pesquisadores avaliar quais genes expressos durante a gravidez codificam proteínas com maior potencial para interagir com as principais proteínas de diferentes coronavírus, entre eles os SARS-CoV-2, o SARS-CoV (causador da síndrome respiratória aguda grave) e o MERS-CoV (da síndrome respiratória do Oriente Médio).

“Fizemos dois tipos de análise. Inicialmente avaliamos a interação das proteínas virais com todas as proteínas placentárias. Em seguida, avaliamos essa interação considerando quais genes tinham a expressão diminuída ou aumentada ao longo da gravidez”, explica Justulin.

Com o objetivo de descobrir especificamente quais células da placenta expressam os genes das proteínas identificadas que potencialmente interagem com o vírus, o grupo recorreu a conjuntos de dados públicos disponíveis nos bancos COVID-19 Cell Atlas e Human Cell Atlas Data Portal. Esses repositórios possuem dados de sequenciamento de RNA de célula única (do inglês, single-cell RNA-Seq). Com esse tipo de análise, é possível obter o transcriptoma de cada uma das células que compõem um tecido, em vez de olhar o tecido como um todo.

As análises por bioinformática foram realizadas em colaboração com os pesquisadores Robson Carvalho (IBB-Unesp) e Célia Regina Nogueira (Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Botucatu), além da aluna de doutorado Sarah Santiloni Cury (IBB-Unesp).

Principais achados

As análises e simulações revelaram que as células trofoblásticas que compõem as vilosidades coriônicas da placenta – parte fetal do órgão – coexpressam altas quantidades de DPP4 e de CSTL durante toda a gestação.

“A DPP4 já foi relacionada à infecção pelo MERS-CoV em estudos anteriores e, a CSTL, ao SARS-CoV. Fizemos algumas análises de tecidos fetais e vimos que essas duas proteínas também estão expressas no feto em quantidades significativas”, conta Justulin.

O estudo revelou ainda que ao longo da gravidez há uma grande alteração na expressão dos genes DAAM1 e PAICS (enquanto o primeiro aumenta, o segundo diminui com o passar dos trimestres). Ambos codificam proteínas que, segundo as simulações computacionais realizadas na Unesp, são capazes de interagir com proteínas de coronavírus.

Na avaliação dos autores, o artigo recém-divulgado apresenta as primeiras evidências da existência de um mecanismo alternativo de infecção das células placentárias pelo SARS-CoV-2, que precisará ser confirmado e melhor compreendido em estudos futuros. Uma das ideias do grupo é analisar a expressão gênica na placenta de gestantes que contraíram COVID-19.

“Também pretendemos infectar células placentárias in vitro e observar o que acontece em termos de expressão gênica. Mas esse tipo de experimento requer um laboratório com nível 3 de biossegurança e, para isso, estamos firmando parcerias com grupos de outras instituições”, diz Justulin.

O trabalho divulgado na bioRxiv contou com apoio da FAPESP também por meio de um auxílio concedido a Carvalho e de uma Bolsa de Doutorado concedida a Flávia Bessi Constantino, primeira autora.

“Neste momento de dificuldade mundial é gratificante poder contribuir de alguma forma para desvendar os mecanismos de infecção do vírus. Como nossa linha de pesquisa é relacionada com as fases iniciais do desenvolvimento, ficamos intrigados com a possibilidade de o vírus infectar a placenta e causar complicações para o desenvolvimento embrionário. Foi assim que surgiu a ideia do trabalho”, afirma Constantino.

O artigo Prediction of non-canonical routes for SARS-CoV-2 infection in human placenta cells pode ser lido em www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.06.12.148411v1.full.pdf.

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