Cuidados devem começar antes da concepção com boa alimentação e hábitos da gestante; via de parto e amamentação trazem impactos até a vida adulta.
Por Úrsula Neves, da Agência Einstein
Os primeiros mil dias na vida de um bebê – que começam na concepção e terminam por volta dos dois anos – são uma janela de oportunidades para o desenvolvimento de uma criança em que é possível estimular e ensinar hábitos que vão influenciar a saúde e o estilo de vida até a fase adulta.
“Esse período é de maior desenvolvimento da vida do ser humano, em todos os sentidos. Tanto no crescimento, ganho de peso, como em seu desenvolvimento físico, motor, psicológico, cognitivo e no aprendizado. Em nenhum outro momento de nossa vida teremos essa velocidade e importância dentro de cada mudança que ocorre nesses primeiros mil dias”, explica a pediatra Luísa Zagne Braz, coordenadora da linha de Cuidado Infantil e da Prática Médica do Hospital Municipal da Vila Santa Catarina, administrado pelo Hospital Israelita Albert Einstein em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS).
A pediatra explica que é nesta fase que os diversos sistemas primários são formados, como os circuitos sensoriais (visão e fala), de aprendizagem e de memória, de velocidade de processamento, de afeto e de recompensa. São áreas ligadas ao funcionamento do corpo, mas que também influenciam na maneira com que os indivíduos se relacionam.
Os mil dias começam a contar desde a concepção pois, ainda no útero da mãe, os bebês ficam expostos a todas as substâncias ingeridas, utilizadas ou até mesmo inaladas pela gestante, como alimentos, medicamentos, bebidas alcoólicas, cigarros e até mesmo gases poluentes. Os especialistas ouvidos pela Agência Einstein explicam que até mesmo o estado psicológico da mulher provoca reações no feto.
“Tudo que acontece de bom e de ruim tem um impacto muito profundo durante os primeiros mil dias na vida de um bebê. Por isso, é preciso que os pais e cuidadores sejam muito cuidadosos neste período. Os estudos já esclarecem que é possível alterar a expressão dos genes por meio de mudanças em atitudes e hábitos de vida. A genética por si só não é determinante. É por meio de hábitos, atitudes, alimentação e escolhas diárias que fazemos no nosso dia a dia que determinamos o nosso futuro”, explica Daniel Becker, pediatra sanitarista.
O especialista lembra que esse período de cuidados com o bebê deve começar antes da concepção. “Três meses antes, os futuros pais podem aumentar a possibilidade de ter filhos saudáveis, influenciando os genes de maneira positiva seguindo bons hábitos de vida e com estímulos positivos”, complementa.
Segundo especialistas, a principal preocupação deve ser a de garantir todos os nutrientes necessários para um adequado neurodesenvolvimento do bebê, como proteínas, zinco, ferro, ácido fólico, além de vitaminas A, D, B12 e B6.
Na gestação, o mais importante é focar na qualidade dos alimentos ingeridos, seguindo sempre uma dieta equilibrada e saudável. Muitas pesquisas que servem como base para recomendações da Academia Americana de Pediatria (AAP) demonstram que, por meio do líquido amniótico, o bebê já começa a sentir o sabor dos alimentos e a desenvolver suas preferências e predisposições alimentares. Ou seja, se a mãe tiver hábitos ruins, a criança tem um risco maior de se alimentar mal e, consequentemente, de desenvolver doenças crônicas, como obesidade, hipertensão arterial ou diabetes.
Parto normal também traz benefícios
Além de buscar boa alimentação e bons hábitos, como se exercitar durante a gestação, a via de parto também é importante. O parto vaginal é, para a grande maioria dos casos, mais seguro e impacta positivamente na recuperação da mulher no pós-parto e na saúde da criança por toda sua vida.
“O parto normal é a via mais natural e que ocorre quando o bebê atinge a sua maturação completa entre 37 e 40 semanas de gestação. A via de parto vaginal auxilia diversos fatores importantes, sendo também de extrema importância dentro dos mil dias dessa criança trazendo diversas contribuições”, enfatiza a pediatra Luísa Zagne Braz.
A médica explica que o parto normal auxilia na saída do líquido dos pulmões, preparando o bebê para a respiração e, assim, diminuindo o risco dos distúrbios respiratórios pós-nascimento. Ao passar pelo canal vaginal, existe também uma colonização dos bebês de uma microbiota, que vai auxiliar no desenvolvimento da defesa do organismo nos primeiros meses de vida.
O parto normal também permite uma alta hospitalar mais rápida para mãe e filho, o que diminui os riscos de infecções. Outra vantagem é que a amamentação é facilitada, pois o trabalho de parto facilita na descida do leite. “Essa é a melhor e mais segura forma de nascimento, sendo a via de parto cirúrgica, a famosa cesária, um procedimento que deve ser indicado pelo médico obstetra em situações de exclusão e baseadas em literatura. Converse com o seu médico e deixe a medicina trabalhar em favor da natureza”, frisa a pediatra.
Leite materno é o melhor alimento
Dentro desses mil dias, o ponto mais importante dentro da alimentação do recém-nascido ainda é o leite materno. É a estratégia que isoladamente mais previne mortes em crianças menores de cinco anos, uma vez que é um alimento completo com todos os nutrientes que o bebê precisa.
“O leite materno é o alimento mais completo que existe para o ser humano em seus primeiros mil dias, devendo ser exclusivo nos primeiros seis meses e de forma complementar até os dois anos ou mais. Apesar da enorme variedade de fórmulas infantis, nenhuma será tão individualizada e completa como o leite materno”, diz a pediatra. Somente após os primeiros seis meses do bebê e o aparecimento de alguns sinais que demonstram maturidade neurológica, como conseguir sentar sozinho, é que devem ser introduzidos outros alimentos.
A introdução alimentar, segundo a médica do Einstein, deve começar com todos os alimentos sendo oferecidos em forma de purê (amassados no garfo) e não como sopas e/ou batidos, uma vez que essa consistência é muito importante para o aprendizado da mastigação e a diminuição do risco de engasgo.
Ela explica que somente neste momento deve ser introduzida a água para o bebê – antes do sexto mês de vida ele precisa apenas do leite materno e/ou da fórmula. Açúcar, suco, sal e demais conservantes não devem ser oferecidos. O fundamental desde o início é que a criança aprenda a ter uma alimentação saudável, variada, com frutas, legumes, verduras, leguminosas e proteínas.
“Vivemos em um país muito rico de variedade nutricional e isso deve ser aprendido na infância. Lembro que tudo nesse período é estímulo e aprendizado, devendo ser realizado com segurança e orientação com a supervisão de um profissional de saúde. Outro ponto fundamental é que chamamos esse período de alimentação complementar justamente porque o leite materno deve ser mantido e estimulado até os dois anos de vida”, orienta a médica. Segundo ela, também deve ser feita a suplementação da vitamina D e de ferro após os primeiros seis meses de vida, que é recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria.
“A introdução alimentar com comida natural deve seguir as regras propostas pelo ‘Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 anos’, do Ministério da Saúde, que é um excelente material de apoio aos pais e profissionais de saúde. O convívio com a natureza e os animais também é muito importante para o fortalecimento da imunidade e na formação de uma série de habilidades importantes para as crianças”, indica o médico Becker.
Importância dos estímulos para o desenvolvimento dos bebês
Além da preocupação com o que criança come, os especialistas explicam que é importante reduzir o tempo de tela e estimular o livre brincar. Os pediatras são unânimes em dizer que a criança deve ter oportunidade de conviver com a natureza e explorar o mundo.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, o tempo de tela recomendado para menores de dois anos é zero. “Soube de crianças de 2 anos que ficam até oito horas no celular. O aumento das telas era inevitável, mas o excesso é tóxico. Prejudica o desenvolvimento, favorece o consumismo e a passividade, a futilidade e o bullying, promove perda da autoestima, gera irritabilidade, insônia, problemas de memória, sedentarismo, isolamento, perda de habilidades sociais, depressão, auto-lesão e suicídio”, aponta o pediatra Daniel Becker.
A pediatra do Einstein afirma que é fundamental que os pais levem a criança para um acompanhamento com um pediatra, atualizem sempre a caderneta de vacinação e observem se os filhos estão atingindo os marcos de desenvolvimento infantil, que são habilidades esperadas para cada faixa etária.
A maneira como os pais, além dos cuidados mais diretos, reagem às mais diversas situações também molda o desenvolvimento do bebê. Crianças expostas a um ambiente seguro, com os pais próximos e uma alimentação saudável, apresentam um desenvolvimento cerebral melhor do que crianças inseridas em um ambiente desestruturado, com negligências ou privações emocionais.
“O maior cuidado se chama amor, além de carinho, preocupação, tempo com interações de qualidade. Ambiente seguro, acolhedor, higiene adequada e rede de apoio para a mãe e o bebê também são fundamentais. As memórias afetivas desenvolvidas nesse período são eternizadas na personalidade dos seres humanos, sendo essenciais para o desenvolvimento social, cognitivo e emocional das crianças”, destaca a pediatra Luísa Zagne Braz.