Paiva Rebouças – Sala de Ciência-Agecom/UFRN |
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Estudo inovador utiliza linguagem para prever riscos de transtornos mentais em jovens – Arte: José Bechara; Foto:Rômulo Fialdini |
Imagine uma consulta que começa, não com um prontuário médico tradicional, mas com uma história construída a partir de uma imagem alegre. Agora, visualize que, por meio das palavras escolhidas, da forma como elas se conectam e das emoções transmitidas, seja possível prever o risco de uma pessoa desenvolver depressão, ansiedade ou psicose. Essa ideia inovadora foi o foco de um estudo brasileiro liderado pela neurocientista Natalia Mota, egressa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O estudo utilizou inteligência artificial para analisar as formas de expressão de jovens em risco clínico de transtornos mentais
A pesquisa, que conta ainda com participação de Marina Ribeiro, doutoranda do Instituto do Cérebro (ICe/UFRN), acompanhou 4.501 pessoas de 18 a 35 anos em São Paulo. Dessas, 174 apresentaram sinais leves de sofrimento psíquico e foram selecionadas para uma segunda etapa, com entrevistas presenciais. Após essa triagem, 71 participantes seguiram no estudo com dados completos. Os voluntários foram divididos em dois grupos: 42 pessoas com risco clínico (grupo CHR, da sigla em inglês Clinical High Risk) e 29 no grupo de controle. Depois de dois anos e meio, os pesquisadores observaram três desfechos. Entre os que estavam em risco, 15 pessoas ficaram bem sem desenvolver transtornos (grupo remitido), 23 foram diagnosticadas com depressão ou ansiedade e quatro evoluíram para casos de psicose. Antes desse desfecho, todos os participantes foram convidados a contar pequenas histórias com base em três imagens positivas. Essa atividade fazia parte de um protocolo simples chamado “Happy Thoughts”. As falas foram gravadas, transcritas e analisadas com algoritmos que criam uma espécie de “mapa” da narrativa: cada palavra é um ponto e as conexões entre elas são traçadas como linhas, formando uma rede. O que interessa aos pesquisadores não é apenas o conteúdo das histórias, mas como elas são estruturadas. Uma fala com muitas palavras diferentes e conexões variadas forma um mapa mais rico. Já uma narrativa com muitas repetições ou com termos que se conectam sempre da mesma forma gera um padrão mais fechado, mais previsível. Participantes do protocolo “Happy Thoughts” narram histórias que oferecem pistas sobre seu estado emocional – Arte: José Bechara; Foto: Everton Ballardin O estudo mostrou que as pessoas que não desenvolveram nenhum transtorno ao longo do tempo — as do grupo remitido — foram justamente aquelas cujas narrativas apresentavam mapas mais variados, com mais ligações entre palavras diferentes. Já os jovens que mais tarde desenvolveram desordens como ansiedade e depressão tinham narrativas mais repetitivas e previsíveis. Além da estrutura da fala, os pesquisadores também observaram o conteúdo emocional das palavras utilizadas. Mesmo ao descrever imagens de teor positivo, jovens que mais tarde foram diagnosticados com depressão ou ansiedade recorreram com frequência a termos associados a “tristeza”, “medo” ou “raiva”. Essa expressão emocional fora de contexto pode funcionar como um sinal precoce de alerta. Interessante que os padrões da estrutura da fala medidos por uma métrica chamada LSCz parecem ser mais determinísticos, ou seja, não aleatórios. A sigla vem do inglês Largest Strongly Connected Component z-score e se refere ao quanto as palavras em uma narrativa estão conectadas entre si de forma recíproca, em comparação com uma versão aleatória da mesma fala. Funciona assim: os pesquisadores transformam o discurso em um “mapa” de palavras, onde cada termo é ligado ao próximo. Depois, embaralham essas palavras centenas de vezes no computador para ver como seria essa conexão por puro acaso. O LSCz mostra o quanto essa estrutura está sendo conectada por algum fator em comum. Inteligência artificial ajuda a revelar sinais precoces de transtornos mentais em jovens – Arte: José Bechara; Foto: Fernando Piçarro Os pesquisadores verificaram que esse fator estava associado a sintomas como irritabilidade persistente, empobrecimento de ideias e isolamento social. Quanto mais alta a métrica, mais a conectividade da narrativa era determinada por esse fenômeno — o que pode refletir ruminação, ou seja, a tendência de ficar preso em pensamentos negativos. A pesquisa também observou que a escolaridade influencia os resultados. Jovens com menos anos de estudo apresentaram maior gravidade dos sintomas, o que reforça a relação entre linguagem, cognição e vulnerabilidade emocional. Mobile Brain Para os autores do estudo, a análise da fala é um método simples, acessível e de baixo custo, pois pode ser feita com um gravador ou mesmo celular comum. Isso abre espaço para que a estratégia seja adotada em escolas, unidades de saúde e atendimentos iniciais, ampliando o rastreio de sofrimento psíquico em contextos onde exames especializados nem sempre estão disponíveis. Em vez de depender apenas de avaliações longas ou exames laboratoriais, profissionais podem se apoiar na forma como a pessoa se expressa para identificar sinais de alerta.
Natalia Mota, líder da pesquisa – Foto: Rebeca Figueiredo/Divulgação A ideia de que a linguagem pode refletir o estado mental tem ganhado cada vez mais destaque na ciência e na psiquiatria, especialmente graças à contribuição da neurocientista e psiquiatra Natália Mota, autora principal do estudo. Sua pesquisa, desenvolvida durante o mestrado e doutorado em Neurociências no ICe/UFRN, tem demonstrado que observar como uma pessoa se expressa — e não apenas o conteúdo de suas palavras — pode revelar sinais precoces de sofrimento psíquico, mesmo antes de um diagnóstico formal. Na área de saúde mental, identificar esses sinais antecipadamente pode ser decisivo, oferecendo uma oportunidade valiosa para ações de prevenção e promoção da saúde mental em escala Esse conhecimento fundamentou o surgimento da Mobile Brain, startup brasileira da qual Natália Mota é cientista-chefe. A empresa aplica princípios de neurociência computacional para criar ferramentas voltadas à saúde mental e à educação. Com base em teorias como a dos grafos, suas tecnologias analisam a estrutura de narrativas orais para identificar padrões associados a dificuldades cognitivas ou sintomas emocionais. Um dos produtos da Mobile Brain, o LitMetrix, é usado para monitorar a complexidade narrativa de crianças em fase de alfabetização, ajudando a prever sua evolução na leitura e compreensão textual. A empresa esse ano lança um novo produto, o CogMetrix, que permite avaliar sinais como esses permitindo identificar grupos que necessitam de ações em prevenção e promoção de saúde mental em larga escala. Interessados em conhecer os serviços oferecidos ou entrar em contato com a equipe podem acessar o site: www.mobilebrain.com.br. UFRN |