Estudo propõe uso de inteligência artificial no diagnóstico do transtorno do espectro autista


Ricardo Muniz  |  Agência FAPESP – O diagnóstico do transtorno do espectro autista (TEA) é ainda um grande desafio pelo grau de complexidade envolvido, exigindo profissionais altamente especializados. O TEA é uma condição de neurodesenvolvimento, cujos sintomas associados variam consideravelmente. A incidência, segundo o último relatório do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, é de um caso a cada 36 pessoas e não há um marcador bioquímico que permita determiná-lo com precisão. Propor uma metodologia quantitativa para diagnóstico foi a sugestão dada por pesquisadores em artigo publicado na revista Scientific Reports. O trabalho se baseou em dados de imagens cerebrais de 500 pessoas, sendo 242 pertencentes ao espectro.

Usando dados obtidos por ressonância magnética, pesquisadores “treinam” inteligência artificial para auxiliar no diagnósticos do autismo. Pesquisa envolveu físicos, estatísticos, médicos e neurocientistas de diferentes centros no Brasil, França e Alemanha (imagem: acervo dos pesquisadores)

A ideia foi obter o diagnóstico com auxílio de técnicas de aprendizado de máquina a partir dos dados de redes cerebrais. “Iniciamos o desenvolvimento de um método coletando essas imagens por exames de ressonância magnética ou eletroencefalograma”, conta Francisco Rodrigues, professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), em São Carlos, e um dos autores apoiados pela FAPESP. “Comparando mapas de pessoas que apresentam ou não TEA, verificamos que seria possível fazer o diagnóstico usando essa metodologia.”

Os pesquisadores abasteceram um algoritmo, que é um método de aprendizagem de máquina, com esses “mapas”. A partir dos exemplos aprendidos, o sistema pôde determinar quais alterações cerebrais estavam associadas ao espectro. A acurácia dos testes foi superior a 95%.

Muitos trabalhos recentes propõem métodos para o diagnóstico de TEA com base em aprendizado de máquina. No entanto, se concentram em apenas uma métrica estatística, sem levar em consideração a organização da rede cerebral, que é o diferencial deste estudo, destacam os autores. O mapa do cérebro, também chamado de rede cortical, mostra como as regiões do órgão estão conectadas. Essas redes começaram a ser estudadas há cerca de 20 anos e têm oferecido uma nova visão sobre neurociências. “Assim como uma rodovia com interrupções altera o tráfego em uma região, o cérebro com alterações leva a mudanças no comportamento”, explica Rodrigues.

Pelas imagens obtidas nos exames de ressonância é possível verificar mudanças em determinadas regiões do córtex, assim como o fato de que as redes cerebrais de pacientes mostram mais segregação, menos distribuição de informações e menos conectividade. Essas regiões estão envolvidas em processos cognitivos, emocionais, de aprendizagem e memória.

“Até há alguns anos, pouco se sabia sobre as alterações que levam ao surgimento de sintomas. Hoje sabe-se, por exemplo, que circuitos cerebrais alterados em pacientes com TEA podem estar relacionados a alguns comportamentos. No entanto, a maioria dos estudos anatômicos mostra que as alterações são pouco visíveis, o que nos indica a dificuldade de diagnosticar os casos mais leves. Portanto, nosso trabalho é um passo importante em direção a novas metodologias que permitam um melhor entendimento dessa neurodivergência”, explica o professor.

A metodologia ainda está em desenvolvimento e levará anos para ser implementada. No entanto, é um passo importante para determinar as diferenças no cérebro e poderá, no futuro, ser usada para auxiliar os especialistas, principalmente nos casos em que há dúvidas com relação ao diagnóstico do paciente.

Aplicações variadas

Rodrigues explica que o trabalho ainda é um pequeno passo para entender como o TEA está relacionado às alterações no cérebro e que muitos estudos ainda são necessários para que essa metodologia de diagnóstico automático seja colocada em prática. O mapeamento do cérebro é um passo importante não apenas para a identificação de autismo, mas também de outras condições. Trabalhos anteriores mostram que esses mapas podem ser usados para a detecção de esquizofrenia também com grande precisão.

“Há uma década iniciamos o desenvolvimento de novos métodos para identificação de doenças mentais e verificamos que a esquizofrenia é um transtorno cujo diagnóstico pode ser muito aprimorado com o uso dessa tecnologia, que usa redes do cérebro e inteligência artificial. Aplicamos também essa metodologia recentemente no caso de Alzheimer e verificamos que é possível um diagnóstico automático preciso”, cita Rodrigues, referindo-se a estudo publicado no Journal of Neural Engineering em 2022.

Ainda há muitos desafios envolvidos, pois as bases de dados são pequenas e sua coleta não é simples. Mas, como metodologia geral, pode ajudar no entendimento de diversas condições – e um dos objetivos do grupo de pesquisadores é ver a relação entre elas.

“Quão semelhante, em termos de alterações cerebrais, são a esquizofrenia e o Alzheimer? Se conseguirmos relacionar os transtornos, talvez possamos desenvolver novos medicamentos e tratamentos similares para diferentes condições, ou mesmo adaptar tratamentos de uma condição para outra. Ainda estamos longe desse resultado, mas o que está por vir é bastante promissor”, destaca o cientista.

Os pesquisadores esperam que, ao conhecer melhor como as alterações no circuito cerebral influenciam o comportamento, torne-se possível tratar os pacientes de forma mais humana e eficiente, direcionando melhor as políticas públicas.

A complexidade do tema pode ser aferida pelo alto nível de interdisciplinaridade da pesquisa. O grupo foi constituído por físicos, estatísticos, médicos e neurocientistas de diferentes centros no Brasil, França e Alemanha. Foram considerados dados médicos coletados por neurologistas, algoritmos de inteligência artificial desenvolvidos por físicos e estatísticos, além de interpretação e análise das alterações cerebrais feitas por neurocientistas.

O trabalho foi parte da tese de doutorado de Caroline Alves, cuja formação envolve física, ciências físicas e biomoleculares e ciência da computação. A FAPESP apoiou também outros dois autores da pesquisa, por meio de Bolsas de Doutorado para Aruane Pineda e Kirstin Roster, ambas orientadas pelo professor Rodrigues.

O artigo Diagnosis of autism spectrum disorder based on functional brain networks and machine learning pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41598-023-34650-6.

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