“No combate à COVID-19, o comportamento humano pode ser parte do problema ou da solução”


Karina Toledo | Agência FAPESP – Quando se trata de enfrentar uma doença altamente transmissível como a COVID-19, o comportamento humano pode ser tanto parte do problema quanto da solução, de acordo com especialistas em ciências sociais e comportamentais. Enquanto não há vacina ou tratamento eficaz disponível, aderir a medidas como distanciamento físico, uso de máscara e higienização frequente de mãos e objetos segue sendo a principal forma de conter a disseminação. Mas por que algumas nações estão lidando com esse desafio de forma tão mais eficiente que outras?

Em seminário on-line organizado pela FAPESP, especialistas em ciências sociais e comportamentais elencaram fatores psicológicos, políticos e culturais que podem influenciar o modo como diferentes populações respondem à pandemia (foto: cariocas se aglomeram em praia do Rio de Janeiro no mês de agosto, em plena pandemia; foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Reunidos no seminário “Values-Based Behavior under COVID-19”, realizado no dia 4 de novembro no âmbito da série FAPESP COVID-19 Research Webinars, estes especialistas compartilharam diferentes visões sobre o tema.

Para Jay Van Bavel, professor de Psicologia e Ciências Neurais da Universidade de Nova York (Estados Unidos), o perfil de liderança de cada país é um dos fatores determinantes da qualidade da resposta à pandemia, uma vez que ela envolve medidas de âmbito nacional, como fechamento de fronteiras, restrição de viagens, desenvolvimento de políticas públicas e mobilização de recursos médicos e científicos. Levam vantagem, segundo o pesquisador, nações comandadas por “líderes identitários”, isto é, capazes de inspirar confiança, promover a cooperação e um senso compartilhado de identidade entre seus seguidores, como é o caso da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern.

“Jacinda Ardern talvez seja a liderança mais eficiente do planeta, especialmente no que se refere ao enfrentamento da COVID-19. Ela ficou famosa por usar a estratégia da liderança identitária e costuma se referir à Nova Zelândia como seu ‘time de 5 milhões de pessoas’. Quando a epidemia foi controlada no país, Jacinda saiu para tomar um brunch e mostrar às pessoas que era seguro voltar a circular. Mas não havia lugar no restaurante escolhido, então ela saiu e aguardou. Não quis fazer a foto de divulgação em uma condição insegura, que contrariava as regras sanitárias, ou se valer dos privilégios de sua condição. Isso seria uma clara violação da liderança identitária, que tem muito a ver com ser um modelo de comportamento”, explicou Bavel.

No outro extremo da escala de eficiência o pesquisador coloca seu próprio país, os Estados Unidos, campeão mundial em casos e mortes por COVID-19. “Temos universidades de classe mundial, grandes grupos de pesquisa, somos líderes no desenvolvimento de vacinas e fármacos e ainda assim falhamos catastroficamente. Por que tamanha diferença?”, questionou.

Com o objetivo de responder a essa pergunta, seu grupo de pesquisa rastreou durante meses a movimentação de 15 milhões de norte-americanos por meio de seus smartphones e notou um padrão consistente: a população se mostrava mais engajada em manter o distanciamento social nas regiões do país em que a candidata Hillary Clinton, do partido Democrata, havia tido mais votos na eleição presidencial de 2016 do que nos condados onde o mais votado foi Donald Trump, do partido Republicano. De modo geral, as distâncias percorridas pelos cidadãos passaram a aumentar a partir de abril, assim como o gap comportamental entre liberais (eleitores democratas) e conservadores (eleitores republicanos).

“Os condados que votaram majoritariamente em Trump apresentaram, em média, uma adesão 14% menor ao isolamento social e tal fato claramente precedeu o aumento nas taxas de morte e infecção”, disse Bavel.

Com o intuito de ampliar a análise para outros contextos, o cientista coordenou entre abril e maio uma pesquisa on-line com 46,5 mil voluntários de 67 países. O trabalho envolveu colaboradores de 170 instituições, entre eles Paulo Boggio, do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que também participou do webinário organizado pela FAPESP. O objetivo do estudo foi investigar, por meio de um questionário, o que levava as pessoas a adotar determinados comportamentos sanitários e a endossar intervenções como o fechamento de bares, restaurantes e escolas. A conclusão foi que, quanto mais os indivíduos se identificam e se preocupam com a nação onde vivem, mais propensos se mostram a seguir as diretrizes de saúde pública e a apoiar políticas que têm como objetivo manter a população segura.

“A identidade nacional se mostrou um preditor robusto de adesão às diretrizes sanitárias em todo o globo”, contou Bavel durante o evento. “Tivemos o cuidado de separar o nacionalismo saudável daquele que chamamos de nacionalismo narcísico – representado pelo sentimento inflado e agressivo de quem pensa que seu país é sempre o melhor e está acima de tudo. O nacionalismo narcísico não se mostrou um preditor tão robusto de adesão às medidas sanitárias e, em alguns casos, como nos Estados Unidos, esteve associado a comportamentos de risco.”

O questionário também buscou avaliar a influência da ideologia política sobre o comportamento dos indivíduos no contexto da pandemia. Segundo Bavel, foi possível observar entre os voluntários que se declararam de esquerda uma tendência levemente maior de apoio às medidas sanitárias. “Foi um efeito diferente e bem menor do que o relacionado com a identidade nacional”, comentou o pesquisador.

Os resultados completos da pesquisa foram divulgados em artigo ainda sem revisão por pares disponível na plataforma PsyArXiv. No texto, os autores ressaltam achados de trabalhos anteriores que mostraram como a identidade nacional pode motivar as pessoas a se envolverem em comportamentos custosos, mas que beneficiam outros membros da comunidade em que moram.

Soma-zero

Entender essa relação entre interesses individuais e coletivos torna-se fundamental quando o objetivo é promover o esforço cooperativo global, como destacou Boggio em sua apresentação.

“É comum pensarmos que o ganho de uma pessoa representa necessariamente uma perda para outra. Na Teoria dos Jogos é o que se chama de soma-zero. Mas, quando se trata de solucionar problemas globais, como uma pandemia ou a mudança climática, fica evidente que a natureza da soma é diferente. A infecção de um indivíduo é uma ameaça para ele e todos ao seu redor. A perda de um é a perda de todos, então a soma é negativa. Do mesmo modo, o ganho de alguém com a adesão às políticas de saúde pública representa o ganho de muitos, e a soma é positiva”, explicou o professor do Mackenzie.

Segundo Boggio, nesse contexto em que o comportamento individual tem impacto sobre a saúde coletiva, o processo de tomada de decisão se dá no campo da moralidade. No caso da COVID-19, porém, ainda há incertezas quanto aos riscos associados a determinados comportamentos, como circular por locais públicos sem máscara, por exemplo.

“Evidências da literatura científica indicam que as pessoas se mostram menos dispostas a fazer sacrifícios pelas outras quando os benefícios não são claros. Por isso, o modo como se informa a população sobre os riscos e sobre como lidar com o problema faz toda a diferença. É realmente importante que as lideranças políticas e a mídia promovam a cooperação incentivando os comportamentos pró-sociais. Estudos mostram que o ato de valorizar aqueles que cooperam aumenta as chances de que eles continuem agindo dessa forma e também faz com que outros passem a cooperar. Por outro lado, a falta de sanção a comportamentos antissociais pode reduzir a cooperação até mesmo entre os já engajados”, explicou o pesquisador.

O grande desafio da atualidade, na avaliação de Boggio, é fazer a mensagem (o sinal) se sobressair às fake news e às teorias conspiratórias (o ruído). “Se tornou difícil até mesmo saber qual é o sinal, pois muitas teorias da conspiração foram aceitas como informação factual. Algumas são simplesmente tolas, mas outras estimulam o preconceito e a polarização ou trazem consequências perigosas para a saúde, como é o caso das mensagens antivacinação”, afirmou.

Além de combater o ruído quebrando as “câmaras de eco”, como ele chama as redes articuladas para disseminar desinformação, Boggio considera importante ampliar a intensidade do sinal, ou seja, aumentar o poder de persuasão da mensagem. “O primeiro passo para isso é ter lideranças confiáveis e figuras de destaque na sociedade como portadoras desse conteúdo”, argumentou.

Divisões sociais

A taxa de adesão das populações às diretrizes sanitárias para enfrentamento da COVID-19 varia enormemente não só entre os países, mas também entre diferentes regiões de um mesmo país. Para Ortwinn Renn, professor do Instituto de Estudos Avançados de Sustentabilidade da Universidade de Stuttgart (Alemanha), a explicação para esse fenômeno inclui fatores psicológicos, sociopolíticos e culturais.

No campo da Psicologia, contou Renn, há evidências de que 40% das pessoas tendem a buscar proteção (fugir) ao se deparar com uma grande ameaça, ainda que esse comportamento, se levado ao extremo, também represente um risco à integridade física (desidratação ou desnutrição por medo de sair do local escolhido como refúgio, por exemplo). Entre 10% e 15% dos indivíduos, por outro lado, tendem a enfrentar a ameaça. No caso da COVID-19, como o vírus é muito pequeno e não podem lutar com ele diretamente, a tendência é que busquem bodes expiatórios para atacar, como estrangeiros ou conterrâneos de outras matizes ideológicas. Há ainda um terceiro grupo composto pelas pessoas que tendem a ignorar a ameaça e a seguir a vida normalmente. A este grupo pertencem os chamados “superespalhadores” do novo coronavírus, que, por não se sentirem vulneráveis ao patógeno, contribuem para transportá-lo de um local para outro.

“Qualquer tipo de ação governamental ou estratégia de comunicação deve levar em conta esses três padrões básicos de resposta individual. No caso dos que tendem a fugir, por exemplo, é preciso estimular os cuidados com a saúde, para que não deixem de ir ao médico ou de comprar alimentos e remédios. Também é preciso avaliar se aqueles que brigam não estão atacando o alvo errado e deixar claro para os indivíduos do terceiro grupo que, ainda que se sintam seguros, eles podem ser um vetor de transmissão”, disse Renn.

A forte polarização política em países como Estados Unidos e Brasil foi apontada pelo pesquisador alemão como um dos fatores que diminuem a taxa de adesão às diretrizes sanitárias. “Nesses locais, não apenas a eficácia das medidas se tornou tema do debate político, mas a própria periculosidade do vírus. Há uma divisão entre os que acreditam que podemos voltar às atividades e hábitos de antes e os que pensam ser necessário adotar uma série de medidas de prevenção. Vemos grupos nas redes sociais para os quais a doença não significa algo realmente importante”, afirmou.

Do ponto de vista cultural, Renn dividiu os países entre aqueles de mentalidade coletivista e os individualistas. Na avaliação do pesquisador, as nações asiáticas foram as que menos tiveram dificuldades para conter a doença após a primeira onda – independentemente de serem democracias, como Japão, Coreia do Sul e Taiwan, ou autocracias, como a China. “Todas têm em comum a cultura de incentivar os cidadãos a se comportar de modo a contribuir para o bem comum e isso inclui tanto usar máscara quanto aceitar que dispositivos eletrônicos rastreiem suas atividades para poder avisar quando há uma ameaça de contaminação. Em países como o meu [Alemanha] isso não seria aceitável. Mesmo diante de uma ameaça como a COVID-19, isso seria considerado uma violação de privacidade”, contou.

Ainda do ponto de vista cultural, Renn argumentou que em países como Suécia, Noruega e Dinamarca a população confia fortemente no governo central e isso contribui para a adesão voluntária às medidas de saúde pública. Já na França, na Alemanha e no Reino Unido – onde, segundo ele a confiança nos governantes é menor – se faz necessário um esforço maior para convencer os cidadãos de que as medidas de prevenção são eficazes, proporcionais (à ameaça representada pela doença) e justas.

“Em toda a Europa, vemos que entre 70% e 80% das pessoas acreditam que as medidas são eficazes, proporcionais e justas. Cerca de 20% ainda estão em dúvida e entre 5% e 6% pensam ser ineficazes e por isso fazem oposição”, disse.

Renn ressaltou ainda que, à medida que o tempo passa, as populações tendem a se acostumar com a ameaça, o que faz com que a adesão às medidas sanitárias diminua. “Chamamos esse fenômeno de descalibração da normalidade: passa a ser normal conviver com o novo coronavírus e fica mais difícil perceber a proporcionalidade das medidas de prevenção. Minha visão do futuro é que, a menos que tenhamos uma vacina muito eficiente, que nos permita voltar ao velho normal, teremos uma adesão cada vez menor às medidas sanitárias, ainda que venha uma terceira ou quarta onda”, avaliou.

Reforço positivo

Para entender as variações individuais na resposta à pandemia, a professora da Universidade de São Paulo (USP) Martha Hubner, especialista em análise de comportamento, recorre a uma fórmula conhecida como tríplice contingência, ou contingência de três termos (resposta, consequência e estímulos que antecedem a resposta), que é fundamentada na ideia de que o comportamento é um fenômeno natural e é selecionado por suas consequências.

“O grande problema no caso da COVID-19 é que as consequências decorrentes do comportamento – que são a parte mais importante da tríplice contingência – não aparecem de forma tão evidente ou imediata. Se alguém lhe pede que use máscara você pode obedecer, mas a consequência dessa resposta não está logo ali, na sua frente. Você não terá a certeza de que esse comportamento o deixou mais protegido”, explicou a pesquisadora durante o seminário.

Hubner destacou ainda que o enfrentamento da pandemia envolve muitas respostas novas a serem assimiladas e, portanto, não basta simplesmente transmitir as informações para os cidadãos. Os novos comportamentos precisam ser treinados, moldados e socialmente estimulados. Hubner defende a necessidade de se fazer o “reforço positivo” (mostrar que boas coisas poderão ser alcançadas com um determinado comportamento) e de se criar consequências sociais para determinados comportamentos.

“Respostas que vão de encontro aos desejos das pessoas, como ficar longe de entes queridos, são difíceis de serem assimiladas. Levam tempo para se tornarem algo estável e precisam ser constantemente treinadas. Tem de haver regras simples e sem contradição, transmitidas em linguagem amigável e constante. A ciência precisa falar com o público a todo o momento”, ressaltou.

A moderação do seminário foi feita pela professora Deisy Souza, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A abertura do evento contou com a participação do diretor científico da FAPESP, Luiz Eugênio Mello. A íntegra das discussões poder ser conferida em: www.youtube.com/watch?v=VgnF-wkPguI&t=6185s.

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